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Comportamento

Para ler remédios da mãe, filho volta à escola quase aos 50 e alegria é boletim

Paula Maciulevicius | 05/11/2019 08:55
Se as letras ainda estão em formação, o desenho e a pintura já encontraram lugar na preferência entre as tarefas de Evaldo. (Foto: Kísie Ainoã)
Se as letras ainda estão em formação, o desenho e a pintura já encontraram lugar na preferência entre as tarefas de Evaldo. (Foto: Kísie Ainoã)

Um caderno, um boletim, ipês roxos e sílabas que juntas formam as palavras "tomate" e "batata" são o orgulho de quem voltou à escola por um motivo nobre, embora aprender a ler ainda seja tarefa a ser concluída. Para saber qual remédio dar à mãe e em qual período do dia, Evaldo Justino da Silva acatou o convite da assistente social do posto do bairro e voltou para a escola, décadas depois de sair devido aos constantes desmaios por conta de epilepsia.

Humilde de origem e de coração, seu Evaldo não sabe a idade. É a cunhada que responde que, no documento, são 48 anos. "Mas eles são daquela geração que os pais registravam dois, três anos depois", completa a parente já de saída. 

No sofá de casa, na Vila Palmira, o ventilador folheia por si só as páginas do caderno que aparenta ser de alguém nas séries iniciais da educação infantil, quando na verdade, é a persistência de quem foi para o EJA (Educação de Jovens e Adultos) aprender todo o be-a-ba. "Aqui foi quando eu consegui juntar palavra pra mim lê, sabe? Eu não conseguindo ainda, mas eu que fiz com a professora me ensinando", aponta todo faceiro.

Se as letras ainda estão em formação, o desenho e a pintura já encontraram lugar na preferência entre as tarefas de Evaldo, com os ipês roxos. Enquanto o mais difícil tem ficado mesmo com a Língua Portuguesa. "Separar palavras, não, não é palavra. Ah, são síla... Sílabas. Tem as que você não pode desemendar, tem que ser junto, igual CH", reproduz o que já sabe. 

Embora a supervisão da mãe tenha ficado em segundo plano, pela doença, o caderno e o boletim vão para o posto de saúde para que a equipe que o atende, olhe e compartilhe a alegria que ele tem diante de todo o desenvolvimento.

"Lá atrás eu fui desistindo do colégio, eu desmaiava muito, daí saí da escola, que hoje em dia não pode mais", adverte a si mesmo. Para a Ilma e a doutora Flávia, as conquistas são retribuição da atenção recebida por Evaldo como paciente. "Eu sempre levo para a Ilma, para ela ver e agradecer pela força que me deu, se não fosse ela, eu não tava estudando".

Modesto, aluno diz que o nome ainda não é feito só, tem "cola" no quadro. (Foto: Kísie Ainoã)
Modesto, aluno diz que o nome ainda não é feito só, tem "cola" no quadro. (Foto: Kísie Ainoã)
Boletim já foi parar até em posto de saúde para avaliação da equipe que o atende. (Foto: Kísie Ainoã)
Boletim já foi parar até em posto de saúde para avaliação da equipe que o atende. (Foto: Kísie Ainoã)

Da escola, ele gosta. Até sonha em ser veterinário, mas pontua toda a distância dessa realização. "O que eu quero, não consigo mais. Por que? Porque não tem jeito mais, por causa da minha idade. Eu mexia muito com gado leiteiro, tirava leite, eu gosto demais de animal", conta.

Na sala de aula, ele diz que tem gente até mais velha, com mais de 70. O que não dá a ele o título do aluno com mais idade. O nome já sai, como se vê no enunciado de uma das atividades, mas modesto como é, seu Evaldo diz que é cópia do quadro. Sozinho, ainda não sai. Os lápis que coloriram os ipês roxos foram divididos entre ele e um sobrinho, seis para cada um, só que como o ano já está acabando, o aluno não vê problema nenhum na partilha.

Seu Evaldo já foi notícia, infelizmente por queimaduras causadas por uma dupla de assaltantes que sem o menor ressentimento, atearam fogo em Evaldo em 2012, numa época em que ele trabalhava como vigia no Jardim Anache. Foram 50 dias internado, e cicatrizes que o acompanham para a vida.

O tempo de internação dele não é nada perto dos 22 dias que acompanhou a mãe. "Com os remédios, eu que dava tudo. A minha cunhada separava em vasilha, porque ela sabe ler e eu não sei, né? Mas não consegui ler, quando acabava, eu ia lá e ela me dava o outro... Eu tô aprendendo ainda... E sinto a falta dela, ela era grudada em mim".

Dona Orinevia do Rosário teve uma sequência de derrames e problemas cardíacos, segundo o filho e, partiu há pouco mais de uma semana, sem ver o filho lendo.

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