Professora que se descobriu negra hoje ensina aluno a se enxergar
Formada em pedagogia, Fernanda teve a vida transformada por uma professora, agora faz a mesma coisa na instituição que leciona
O racismo está entre os temas mais urgentes no mundo hoje. A revolta da população norte-americana a partir do assassinato de George Floyd, que morreu asfixiado depois que um policial de Minneapolis, ajoelhou-se no pescoço dele durante oito minutos expõe, mais uma vez, essa chaga da sociedade.
Para a maioria dos especialistas no tema, a superação do racismo estrutural passa pela educação escolar, e isso foi tema, inclusive, de um podcast da Folha de São Paulo, o "Folha na Sala, que ouviu a professora universitária Eugenia Portela Siqueira, negra, e que leciona na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Na entrevista, Eugenia cita brevemente o caso de Fernanda Alexandrina dos Santos Machado, hoje com 34 anos, mas que foi sua aluna na UFGD em 2011 no curso de pedagogia. Fernanda, negra, passou por um processo de "aceitação" da própria negritude. Agora professora no interior de São Paulo, ela usa o espaço sagrado da sala de aula, sempre que pode, para debater o racismo e naturalizar as diferenças culturais que permeiam nossa sociedade. Nada melhor que ela contar sua experiência.
"Eu nasci em Campinas. Sou de família baiana que saiu do interior da Bahia para tentar a vida em São Paulo. Meu pai trabalhou inicialmente como pedreiro e depois metalúrgico e minha mãe como empregada doméstica e depois como cozinheira. Sou a mais nova e a única que nasceu em SP de 6 filhos.
Quando criança nunca fui levada a pensar em questões raciais mesmo sendo de família de negros. Sempre enfrentei dificuldades em relação ao meu cabelo que, sendo cacheados, dava trabalho para minha mãe arrumar. Ela chamava de cabelo “duro”, me lembro que quando pequena ela costumava a dizer que meu cabelo não era “tão duro” porque na raiz perto da nuca era bem “molinho” querendo dizer que era mais liso. Sempre estudei em escola pública e desde muito pequena minha mãe conta que eu dizia que queria ser professora.
Minha família não tinha condições de pagar uma faculdade particular e eu não me sentia preparada para estudar em uma universidade pública aqui em SP. Incentivada por uma igreja da qual fazia parte, fui para Dourados fazer o curso de ensino religioso no seminário batista ( seria uma forma de ser professora mas nesse caso em instituições religiosas). Foi conhecendo outras pessoas que estudavam na UFGD que eu percebi que seria possível e então fiz o vestibular. Passei em segundo lugar iniciando os estudos em 2011.
Quando eu entrei na UFGD no curso de pedagogia passei por um processo de autoconhecimento muito grande. Conheci a professora Eugenia já no primeiro semestre e aos poucos sem que ela me dissesse nenhuma palavra diretamente comecei a perceber que meu cabelo alisado e minha lente de contato verde não eram por vaidade mas sim para esconder aquilo que eu era e não gostava, achava feio. Acreditava que meu cabelo quando natural era sinal de mal cuidado, não arrumado, feio mesmo.
Com o passar do tempo, aprofundando os estudos sobre as relações étnico raciais e observando a forma como a professora Eugenia lidava com o tema fui me dando conta de que eu era negra e quis me “ver”como tal. Pois nem sabia como era o meu cabelo natural. Minha mãe começou alisá-lo muito cedo.
Parei de alisar os cabelos deixando-o natural e parei de usar lente. Aos poucos fui me reconhecendo como negra. Foi um processo de dentro para fora. Nunca tinha parado para pensar na questão de negritude por uma questão familiar mesmo. Acreditar que as coisas eram daquele jeito para todos. Só depois que eu comecei a perceber os episódios de preconceito que eu havia sofrido sem perceber
Formada, voltei para o interior de São Paulo e passei em um processo seletivo, fui dar aula na educação básica, final da educação infantil. Chegando o fim do ano fiz a decoração da minha sala com o Papai Noel negro. Justamente por sempre buscar representar todas as crianças. Gostaram do meu trabalho e me chamaram na coordenação para saber se poderia fazer em todas as salas. Eu disse que sim mas que faria o papai noel negro. Consegui autorização e foi muito legal pois começou uma discussão entre as crianças e os todos os funcionários. Primeiro com estranhamento e olhares tortos, depois discutindo o porque não.
A minha história começou na universidade e hoje eu busco fazer o mesmo na escola. Com crianças entre 6 e 8 anos na educação básica. Como foi comigo eu tento ser o exemplo, mais do que falar especificamente para alguma criança. Tento ser uma referência para as meninas com cabelos cacheados e crespos. Sou aquela que elogia. Que está sempre com um penteado no cabelo. Um turbante. Que traz a diversidade nos painéis e nas figuras de atividades.
Percebo que como foi comigo as meninas começam a se identificar e mudam o olhar. Pra mim, a melhor coisa é ouvir: “Prô olha como meu cabelo está bonito como o seu”. Além disse faço oficinas de turbante de boneca negra e vou inserindo as questões étnico raciais durante todo o ano
Como professora eu utilizo toda a oportunidade que tenho para mostrar as contribuições dos negros para a construção do Brasil e tento não deixar que as crianças sejam educadas com as imagens negativas dos negros somem te sendo escravizados. Ensino a história e a cultura afro brasileira."
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