Quando humano é "enquadrado", quem sofre é o cachorro
Na região da antiga rodoviária, moradores de rua criaram uma rede para cães não ficarem desamparados a cada operação na área
Virou rotina na região da antiga rodoviária. Vira e mexe a polícia "enquadra" moradores de rua que vivem por ali, a maioria, de dependentes químicos. Nessas horas, quem perde a parceria são os cachorros, amigos inseparáveis de muita gente que perdeu o teto, mas não a afetividade. Por isso, apesar da tristeza do bichinho quando o amigo vai preso, sempre aparece alguém para cuidar enquanto o dono não volta.
Na semana passada, enquanto outra operação levava suspeitos de tráfico para a cadeia, um dos cães chamou atenção na foto do repórter Marcos Maluf, pelo ar sereno, enquanto os humanos eram revistados. E essa relação rende muita conversa. Em uma manhã acompanhando a rotina por ali, descobrimos que animal de rua é muito bem alimentado e que a maioria se preocupa mais com bicho do que com gente.
“Se acontecer alguma coisa comigo, tenho meus companheiros para ficarem com a Menina e com o Guri”, diz João Carlos Alves Martins. Ele é conhecido por Gaúcho e mora embaixo da ponte, no cruzamento das Avenidas Ernesto Geisel e Manoel da Costa Lima. Há três meses, adotou dois vira-latas recém desmamados para serem seus filhos. “Hoje, eles são tudo pra mim”, afirma.
“Qualquer pessoa chegar aqui não vai ver coisa feia, porque não deixo faltar água e nem ficarem magricelos. Sempre estão alegres e bem alimentados. Ganho ração pra eles e até as marmitas comem. Cuido mais deles do que de mim. Amo muito, como se fossem meus filhos, e já fui parar na delegacia porque bati em um cara que queria pegar eles”, conta Gaúcho.
Ele mora no mesmo local há 23 anos, veio de outro estado para tentar a sorte aqui. O destino deu uma reviravolta e quando percebeu já estava no caminho errado. No meio dos vícios e crimes, a vida é solitária, mas Menina e Guri são os únicos entre tantos “amigos” que não vão julgar nem abandoná-lo, independentemente das circunstâncias.
Os “filhos” são a chance de Gaúcho, e de vários outros moradores de rua, demonstrarem que não perderam a humanidade e manter o laço da afetividade. Por isso, ele faz questão de estar sempre por perto dos seus bichinhos. “Dormem comigo no barraco, nos pés da cama. Acordo cedo e eles me acompanham até a calçada da rua, onde faço os copos de garrafas de vidro”.
Os cachorrinhos são de porte pequenos e ficam presos a uma corda, para não correrem o risco de serem atropelados na rua. Deitam, brincam, bebem água, comem e latem enquanto o dono e outros quatro moradores de rua trabalham vendendo copos no mesmo semáforo.
É cada um por si, mas quando o assunto é a Menina e o Guri, todos se ajudam. Enquanto um vende, outro aguarda sentado do lado dos cachorros, e quando o sinal fecha novamente, é a vez do outro voltar para cuidar e assim vai o dia inteiro.
“Fazem nossa alegria”, afirma Nelson Odair Mendonça de Oliveira sobre Menina e Guri. “Sou dependente químico, tenho meus vícios e fracassos, mas quando ganho dou para os cachorros. Sempre dão marmita, mas por conta dos entorpecentes fico sem fome”, relata.
Ele é o responsável por cortar as garrafas de vidro e fazer os copos. Criou um fogão improvisado e quando amanhece, acende o fogo para começar os trabalhos. Em seguida, Gaúcho leva os cachorros assim o dia fica mais divertido. “Sou 100% eles. É melhor ter um cachorro amigo, que um amigo cachorro. Às vezes, podemos até não gostar da gente, mas gostamos deles que gostam da gente”, destaca.
Antiga rodoviária - Mais para o Centro da Capital, a história não é diferente. Cleber Miller Miguel da Silva de 31 anos e Antônia Aparecida dos Santos de 45, adotaram o vira-lata “Georginho”. “Somos apaixonados por ele, e ele gosta da gente”, afirma o dono.
O casal é dependente químico, montou uma barraca perto da antiga rodoviária onde mora com o cachorro. No meio da bagunça e miséria, ainda sobrou um espaço para doguinho e como “bons” pais, não deixam faltar alimento para o “filho”.
“Estou sempre catando reciclagem e comida no lixo para dar a ele. Às vezes, sobra carne ou osso na marmita e a pessoa joga fora, então pego e dou para o Georginho. Ele é tudo que temos e dorme com a gente”, declara o casal.
Georginho já teve três donos, mas há um ano está com Cleiton e Antônia. “A última que estava com ele era a Ana Paula, e viviam na Avenida Afonso Pena. Mas teve uma briga por lá, alguém bateu nele e o Georginho fugiu. Depois a Ana foi para uma clínica de reabilitação e o cachorro começou a nos seguir. Agora é nosso”, contam.
Enquanto conversavam com a reportagem, dois policiais civis desceram da viatura e, com as armas na mão, “enquadraram” Cleiton. A confusão assustou e, para proteger o filho, Antônia pegou Georginho no colo, se afastou e deu um grito. “Meu cachorro ninguém leva”.
Ela não segurou o choro quando pensou na possibilidade de Georginho ser levado. Contudo, após uma revista na barraca, os policiais foram embora. Cleiton ficou nervoso com a confusão e pegou o cachorro no colo para acalmar. Após receber carinho e lambidas do “filho”, o clima melhorou.
Contudo, caso Cleiton fosse preso, Antônia ficaria com a “guarda” do cachorro, mas também contaria com a ajuda dos colegas que ficam na antiga rodoviária para cuidá-lo.
Outra imagem que também chamou atenção foi a da cachorrinha “se entregou” à polícia junto com o dono, que foi preso por tráfico de drogas em Deodápolis, 252 quilômetros de Campo Grande. O fato aconteceu em março deste ano.