Querida ex-vizinha, me desculpe por ter te achado uma louca varrida
Quantas vezes você julgou sem saber a realidade materna?
Compramos o apartamento em 2019, mas o processo demorou tanto que só nos mudamos dias antes de estourar a pandemia, quando eu já estava grávida de seis meses. No andar debaixo morava um casal e seus dois filhos: uma bebê e outro maiorzinho, porém ainda criança pequena.
Todos os dias pontualmente às 4h da madruga a menor chorava e acordava a vizinhança próxima, incluindo eu que pensava "nossa, a menina tem mais de 1 ano e ainda acorda, que saco!" - mal sabia eu da realidade materna.
Durante o dia as horas eram cortadas pelos berros, choros, barulhos de coisas caindo seguido de um "desce daí agora!" ou "já não te falei mil vezes pra não mexer nisso?". E eu sempre pensava: Jesus, que louca! Pra que foi ter filhos? - mal sabia eu da realidade materna.
Quando entrávamos no elevador e eles estavam lá, mãe, pai e filhos, sempre reparava nos cabelos despenteados, nas olheiras, nas roupas desengonçadas (provavelmente de pais que passavam o dia pegando criança no colo), mas o que mais chamava atenção era o silêncio deles dois um para com o outro, cortado somente pela agitação das crianças.
Pareciam estar sempre num transe, só com o corpo presente e no automático realizando a árdua tarefa de manter os filhos vivos durante isolamento sem data para acabar. E eu pensava "coitados, deixaram os filhos dominá-los" - mal sabia eu da realidade materna.
Também não era raro ouvir as discussões de casal que eles tinham. Por vezes o tom subia, muito provavelmente acentuado pelo combo filhos + home office + pandemia.
E nos quase um ano que moramos lá, nunca tivemos alguma conversa mais aprofundada, justamente porque na minha inocente cabeça pré-maternidade, eles eram pessoas estressadas e até descontroladas. Loucos, né?
Saímos de lá. Meu marido, minha bebê ainda com seis meses e eu grávida do segundo filho no comecinho da gestação. Nunca mais os vimos. E a vida de mãe de dois ainda não havia me apresentado completamente seu lado ácido.
Agora, mais de dois anos depois, não faço ideia de como estejam, mas certamente com as crianças maiores o mar deve estar mais brando por aquelas bandas. Te escrevo então, minha cara ex-vizinha, para me desculpar pelo prejulgamento e te contar que hoje, aqui onde moro (pasme!) a vizinha louca... sou eu.
Jéssica Benitez é jornalista, mãe do Caetano e da Maria Cecília e aspirante a escritora no @eeunemqueriasermae
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