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Comportamento

Será que sairemos mais humanos da pandemia? Antropólogo responde

Quem é essa sociedade no meio da tempestade da Covid-19 e quais os futuros possíveis para ela quando a pandemia estiver dissipada?

Maristela Brunetto | 27/04/2020 08:46
Não é só o medo do desconhecido que nos assombra neste momento. (Foto: Marcos Maluf)
Não é só o medo do desconhecido que nos assombra neste momento. (Foto: Marcos Maluf)

Um cenário de incerteza, com ideias polarizadas, com a convergência ou antagonismo entre saúde e economia, sentimento de humanidade posto em cheque, quem é essa sociedade no meio da travessia da tempestade chamada Covid-19 e quais os futuros possíveis para ela quando a pandemia estiver dissipada? Não é só o medo do desconhecido que nos assombra neste momento e certamente muitos se fazem perguntas sobre o porvir. O momento é desafiador e traz renovação de esperanças, opina o antropólogo e professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Guilherme Passamani.

Ele começa discorrendo que, enquanto o desconhecido se desenha diante dos nossos olhos, mostrando doentes e mortes, surgem vertentes opostas de comportamento, como de afastamento e de aproximação, de medo e de desejo. Na situação limite que é essa (isolamento) parece justamente que os extremos são os elementos que mais se destacam, diz.

As contradições afloram com mais intensidade, como a vontade de obter lucro neste momento e as desigualdades e disso é possível ver os limites desse modelo, sugere. Nesse contexto, Passamani acredita que a sociedade, tão voltada aos valores de uma economia de consumo, agora se vê confrontada com outros comandos, como o dever de ficar em casa, ter que redescobrir sua vida familiar, quem são os vizinhos.

Uma crise dessas, completa, força cada um a mergulhar dentro de si, enquanto o modelo de vida que se vinha seguindo era exatamente o oposto, em uma sociedade hiper modernizada e tecnológica, que exige visibilidade permanente. “Acho que isso é positivo, porque redescobre um lado da humanidade que tá cada vez caindo mais em desuso”.

Epidemia pode fazer a gente redescobrir um lado da humanidade que está cada vez caindo mais em desuso. (Foto: Marcos Maluf)
Epidemia pode fazer a gente redescobrir um lado da humanidade que está cada vez caindo mais em desuso. (Foto: Marcos Maluf)

O professor reconhece que muitos têm dificuldade dessa interiorização, admitindo que há certa glamurização do confinamento por parte de muitas pessoas, como alguns analistas de comportamento já observaram. Não faltam selfies, stories, imagens de atividades físicas e outras cenas da casa e da intimidade para exibir aos outros a ocupação do tempo durante as medidas de isolamento. “É uma dimensão do humano, ao invés de se recolher, ainda precisa se mostrar”.

Ele acredita que tal comportamento está presente nas classes sociais mais altas, porque as pessoas pobres ainda precisam trabalhar diante da falta de recursos. “Essa pandemia ainda tem classe e ela não é pobre. Ainda que, infelizmente, as pessoas que forem morrer em maior número vão ser os pobres.”

Outra face do excesso de interação é a polarização, como é possível se perceber nas notícias e nas redes sociais. O debate sai da política e se apropria da pandemia, como a necessidade ou não de as pessoas seguirem o confinamento, a capacidade de cura ou não por medicamentos. “Essa polarização só está vestindo uma nova roupa”.

O antropólogo alerta para sectarismo, uma “certeza absoluta e desprezo pela perspectiva diversa”, o que considera perigoso. Novamente, ele cita as pessoas mais pobres como as mais prejudicadas, uma vez que não têm poder para contestar os discursos.

Ciência e poder – “O tempo da ciência não é o tempo da política. O tempo da política é um tempo exíguo, os políticos dão respostas de maneira geral positivas para a população porque querem manter os seus cargos públicos”, comenta. O embate, diz, é porque “os cientistas não estão concorrendo a nada, não estão atrás do Prêmio Nobel, se faz ciência para construir vida melhor, conhecer mais”. O antropólogo adverte que a ciência não pode ceder a bravatas e blefes políticos diante da falta de respostas.

Ele reconhece que esse é um dos pontos centrais que o País verifica em meio à pandemia, com uma parcela das pessoas acreditando nas informações das autoridades de saúde e outras confiando no esforço de políticos. Vindo do meio acadêmico, o professor tem um lado nesse embate: “as pessoas deveriam reconhecer a ausência de respostas e adotar os protocolos da ciência”, diz, referindo-se ao isolamento social e as medidas de higiene pessoal para evitar o contágio pelo coronavírus.

Como reforço, compara que até o Papa Francisco fez uma benção solitária e as igrejas se mantiveram fechadas, como demonstração de respeito às medidas. “Acho que nesse momento a palavra final tem que ser da ciência, porque só ela tem instrumentos pra ajudar a minorar os impactos dessa pandemia.”

Exatamente por estarem revestidas de fundamento científico é que as pessoas aceitam ações  extremas, como toque de recolher, comenta Passamani, o que seria inadmissível em outro contexto. “Não é o comando de um político, é a ciência que está falando”, argumenta. Ele considera que não há sinal de que algo assim seria adotado ou tolerado em um momento ordinário.

Antropólogo, Guilherme Passamani torce por uma cultura de esforço contra a desigualdade. (Foto: Arquivo Pessoal)
Antropólogo, Guilherme Passamani torce por uma cultura de esforço contra a desigualdade. (Foto: Arquivo Pessoal)

A humanidade de cada um - O antropólogo considera que a ocorrência da pandemia tem potencial de produzir mudanças positivas nas pessoas. “Mesmo esse momento, que é de profunda consternação, apavoramento, medo e tristeza, que ele nos sirva como uma possibilidade de renovar esperança na vida, nas pessoas, que nos dê condições estratégicas para construir uma sociedade menos desigual.”

Para isso, considera que os números que devam causar maior sensibilidade sejam os de vítimas e não os da economia. “O fundamento da sociedade são as pessoas, se as pessoas não existirem, não há sociedade”. Por isso, expõe, é preciso investir na saúde física, mental e cultural em primeiro lugar. Ele torce por uma cultura de esforço contra a desigualdade, “com oportunidades mais éticas para os pobres”.

O antropólogo compara que em outras crises impactantes, foi preciso investir nas pessoas para uma superação, citando que são as pessoas que vão trabalhar, produzir, consumir. Aqui, ele novamente cita a coexistência de sentimentos opostos, como solidariedade, estratégias comunitárias, gentileza, em contraponto a ódio e violência “que estavam guardadinhos dentro de nós”.

“A economia vai ficar combalida...mas só há reconstrução com pessoas vivas”, analisa, comentando que este é um desafio global, em que todos estão no mesmo caminho.

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