Torturada quando criança, Lucélia recebia até choques, mas hoje fala de perdão
Mãe adotiva prendia dedo dela na porta, esmagava língua da menina com alicate e passava pimenta nos olhos.
Quem vê a jovem de 21 anos, com um sorriso no rosto, olhar sereno, simpatia pra dar e vender e dona de uma beleza peculiar, não imagina o quanto Lucélia Rodrigues sofreu na infância e quantas cicatrizes carrega na alma. Torturada quando criança, hoje ela viaja pelo Brasil dando palestras e pregações sobre perdão, superação e amor de Deus.
O caso dela chocou o Brasil em 2008, quando um vizinho fez a denúncia sobre os maustratos e a polícia encontrou Lucélia acorrentada e amordaçada na lavanderia do apartamento onde morava com uma família adotiva, em Goiânia. A jovem esteve em Campo Grande neste final de semana para contar seu testemunho em uma igreja evangélica.
Quase dez anos depois, hoje a vida de Lucélia é completamente diferente. Casada e mãe do Miguel, de 1 ano, ela diz que perdoou Sílvia Calabresi Lima, responsável pelas agressões, e que entende o que Deus fez em sua vida.
Antes da palestra, Lucélia conversou com o Lado B e contou sobre o passado. Aos 12 anos, ela foi entregue a Silvia pela mãe biológica, que na época passava necessidades e não tinha condições de criar os filhos. "No começo eu era tratada como uma princesa, mas não demorou muito e vieram as agressões", conta.
Lucélia se lembra muito bem da primeira surra de cinto que levou por deixar o irmão caçula cair. Pouco tempo depois, o castigo foi pior, quando ela, sem querer, prendeu o dedo do filho de Silva na porta. "Ela quis descontar e prendeu meus dedos na porta também, e daí, todo dia ela prendia meu dedo na porta, mesmo sem eu ter feito algo", recorda Lucélia.
Em poucos dias, as torturas passaram a ser mais severas e cada vez mais sem motivo. "Ela chegava em casa e dizia que não tinha tido um dia bom e já me mandava ir pro ponto, que era a lavanderia, local onde ela me torturava. Lá, havia um ritual de tortura, no qual ela começava me afogando, depois vinha o choque, prendia meu dedo na porta, prensava minha língua com alicate, passava pimenta nos meus olhos, boca e nariz, e por fim me amordaçava e acorrentava", detalha Lucélia.
Todo esse pesadelo durou em torno de um ano e meio. Depois que Silvia foi presa pelo crime, Lucélia foi levada para um abrigo e 9 meses depois adotada por uma família de pastores de Belo Horizonte. Neste tempo, Lucélia ainda ficou cara a cara com a torturadora em uma audiência sobre o caso. "Senti muito medo dela, meu corpo tremia inteiro", diz.
Durante todos esses anos, a jovem nunca mais ficou de frente com Silvia, mas afirma que acredita que este dia ainda vai chegar. "Não desejo mal a ela, não guardo mágoa ou qualquer sentimento ruim. Não sei responder se estou pronta para encará-la de novo. Acho que se Deus ainda não me proporcionou este encontro, talvez eu ainda não esteja preparada, mas quero que isso ocorra um dia, para eu poder abraçá-la e dizer que ela pode seguir a vida em paz, que eu não tenho mais nada por ela", conta.
De maneira serena, Lucélia repete que perdoar não é esquecer, mas sim tocar na ferida cicatrizada sem doer", enfatiza. Em nenhum momento da entrevista, Lucélia estremeceu. nem mesmo contando os detalhes das torturas. "Lembro das torturas e até da dor, achava que ia morrer e tinha dias que eu pedia para que ela me matasse, pois eu não suportava mais aquela situação", pontua.
Mas na hora que ela falou do filho, aí a jovem não conseguiu mais conter as lágrimas. "Meu filho é um sonho pra mim, olho pra ele e tento entender como alguém tem coragem de fazer isso com uma criança", questiona.
Lucélia ainda faz a ressalva de que poderia ter seguido por várias outros caminhos, levada pela revolta da condição de vida que teve na infância e por tatos questionamentos que ela um dia teve. "Mas eu escolhi vencer, dar a volta por cima, e o caminho é o perdão, que só conseguimos através do amor de Deus. Hoje entendo que ele me salvou, pois me queria viva para testemunhar tudo isso", acredita.