Enquanto a cidade dorme, grupo passa a madrugada pedalando no meio do mato
Há mais ou menos um ano, comprei um capacete de ciclista com a ilusão de ir e voltar do trabalho de bicicleta. Como não tenho uma, já havia combinado de pegar emprestado, para comprar a minha magrela depois, caso o projeto, com a finalidade de emagrecer e ter uma vida mais saudável, se concretizasse. Ele não vingou e o coitado do capacete ficou na poeira do quartinho da bagunça de casa.
Ontem, exatamente a meia noite, pela primeira vez ele cumpriu sua missão, estreado em grande estilo, no Pedal da Meia Noite, um passeio por 60 km, em trilhas rurais dentro do município de Campo Grande, organizado pela agência Sopa de Pedras.
Mas não se engane com a palavra “passeio”, apesar da vista formidável, o ritmo é forte, em média 20 km por hora, a maior parte feita no meio do mato, da areia, das pedras, dos galhos, com subidas, descidas e muita, mas muita emoção.
Decidi enfrentar o desafio para descobrir o que motiva tantas pessoas a dedicarem um noite de sono ou de balada para pedalar.
A saída foi na Praça das Araras, no final da Dom Aquino. De chegada, já cai a ficha sobre o despreparo em relação aos outros participantes. Me deparei com um grupo de pessoas equipadas, com blusas térmicas, óculos de proteção, luvas e cantil de hidratação (aqueles que ficam nas mochilas). Um dos organizadores do evento, Nilson Young, o Nil, assumiu a tarefa de ser o guia da empreitada e aumentou um pouco minha adrenalina logo no discurso inicial: “Essa não é uma trilha para iniciantes”.
Como ciclista amadora, ainda de primeira viagem, levei em mãos apenas meu capacete, a minha câmera, algumas frutas e um caderninho de anotações. Nada de luva e nem de casaco para me proteger. Apesar de ter imaginado, minha criatividade nem chegou perto do que seria a experiência.
Na primeira hora percorrida, fomos da ciclovia da Duque de Caixas, até o bairro Santa Helena, ao transitar nas ruas por ali ficou claro que o bairro dormia enquanto a gente pedalava. Mas a paradeira saiu de cena logo em seguida, na trilha conhecida pelos ciclistas como Maria Fumaça, que acompanha a linha féria sentido Terenos.
Ali encontrei o primeiro desafio do percurso, pedalar com os trilhos de um lado e um barranco do outro, onde o equilibro é fundamental. Depois veio uma trilha de pedregulho em meio ao mato alto e já dava para perceber que desafios não iriam faltar. Não só para mim, mas também para quem tem a bicicleta na rotina.
Conheci o gerente Diego França, de 29 anos, ele me acompanhou durante boa parte do trajeto, me contou que começou a pedalar há dois anos, para perder peso. Deixou para trás 22 quilos, ganhou em troca um passatempo, qualidade de vida e uma paixão de duas rodas.
Todo dia quando ele chega do trabalho, percorre cerca de 40 km mas ciclovias da cidade. Mas o pedalar de noite tem uma motivação extra. “Não tem trânsito, o tempo passa diferente e você nunca sabe o que vai encontrar, tem sempre uma surpresa já que não dá para ver nada e isso dá uma adrenalina a mais”, justificou.
Mas aos poucos fui descobrindo o verdadeiro motivo de 58 pessoas estarem ali. “Tem gente que vem pela vontade de ter hábitos de vida mais saudáveis, como eu, outros querem aventura, adrenalina ou até mesmo fugir da solidão”, comentou Breno Mello, um carioca que adotou a cidade morena como casa e há três anos dedica parte do seu tempo às pedaladas.
Realmente, é difícil se sentir sozinho com a solidariedade que surge no caminho. Eu estava sem casaco, e todos se preocupavam comigo. Ficou a lição. Quando disse para Breno que só havia levado frutas para comer durante o caminho, veio outra dica importante. “Um trajeto desse você não pode trazer só fruta, se não pode dar 'prego' (fraqueza e desmaios por fome) e você perde a força é preciso comer alimentos energéticos e se hidratar bastante”, explicou, já me repassando um sache de carboidrato em gel para tomar. O gosto não é dos melhores, mas surtiu efeito.
Nas paradas, feitas de maneira rápida, nos lugares onde haviam "trieiros" e passava apenas uma bicicleta por vez, comecei a reparar mais na alimentação. Vi gente comendo de banana a sanduíche natural, muito chocolate e barrinhas de carboidratos reforçadas. E eu querendo bancar a light, com uma maçã, duas mexericas e algumas castanhas.
A cada quilômetro, ficava mais fácil perceber que apesar da aventura e de toda energia da trilha, o mais legal é o ciclista. Era o maior número de pessoas gentis, solicitas e companheiras por metro quadrado pedalado que eu encontrei nos últimos tempos. Muitos sorrisos e a cada parada, a preocupação se a novata estava bem. Um ambiente onde qualquer sentimento negativo é arrancado pelo vento ou pelas boas vibrações dos companheiros. Mesmo sem nunca ter pedalado com eles, estava me sentindo em casa.
O mecânico de bicicletas, Edson Cubilha, de 30 anos, foi um dos anjos da guarda a motivar nos momentos mais difíceis. Quando a bateria da minha lanterna quebrou, ele e Diego se revezaram para ajudar a iluminar o caminho. E quando eu caia para lanterninha na ordem dos participantes e acabava me afastando do pelotão principal, ele estava lá, me apoiando e me dando um empurrãozinho, sempre com uma palavra de incentivo e orientação. “Pedala! Vamos Aline! Mantenha o ritmo. Se parar de pedalar é pior, tenta manter. Sobe a marcha, desce a marcha”, tudo com muita paciência e atenção.
Às 4h da manhã, o cansaço começou a ficar mais evidente, a dor começou a dar as caras, mas a alegria do passeio incentivava a seguiu a rota. Às 4h30 fizemos a travessia de um rio, os mais espertos e preparados levaram sacolinhas para colocar nos pés. Eu não.
Em alguns pontos, o terreno parecia uma montanha russa de altos e baixos. Mas o maior desafio chegou com a famosa Pedreira de São Luis. Nessa hora você já não sabe mais o que escolher, subida plana ou descida com morros e pedregulhos? A partir dai, a cada pedalada a dor se intensificava, minhas pernas começaram a tremer e o giro do pedal era seguido sempre por um gemido.
Meu desejo de terminar aquele batalha, mas quase chorando, às 5h55min com 50 km percorridos em 6 horas, entreguei os pontos, cheguei ao meu limite. Por um lado chateada, por outro lado orgulhosa de mim por ter ido tão longe na minha primeira experiência. Fui para o carro de apoio e senti todos os músculos do meu corpo doendo.
Denise Dominato, de 42 anos, fez o pedalada noturna pela primeira vez e levou o namorado Márcio Mendes, 44 anos. Os dois concordaram que o trajeto não foi fácil, mas foi fundamental para quebrar medos. “Estou orgulhosa de mim, superei meus medos na trilha da Maria Fumaça passando por aquele barranco”, lembrou Denise.
Como tudo pode sempre piorar, ou melhor (dependendo do ponto de vista), a pedalada acabou sob chuva, às 7h.
Para participar de uma trilha como essa do Sopa de Pedras, com direito a carro de apoio e café da manhã, o valor é praticamente simbólico: R$15,00, sem a camiseta, e R$ 35,00 com. Se você não tiver bicicleta, não se desespere, dá para alugar lá mesmo, as dificuldades começam mesmo depois da largada, mas a recompensa do sentimento satisfação também vem.