Como salvar o Pantanal: um olhar de quem vê a biodiversidade com o coração
Bisneto de caçador muda a história da família, se tornando especialista e defensor da onça-pintada
Para embarcar nessa história o presidente do IHP (Instituto Homem Pantaneiro), coronel Ângelo Rabelo, faz um convite antes do barco hotel Bruno Pesca, deixar o Porto Geral, em Corumbá, a 428 km de Campo Grande. “Tenham como a Bíblia desta viagem o livro do poeta Manoel de Barros.”
Coronel Rabelo, como é conhecido, trabalhou durante dez anos no combate aos coureiros de jacarés e traficantes de animais silvestres no Pantanal sul-mato-grossense. Hoje dedica a vida à preservação do bioma e da cultura do homem pantaneiro.
Com a certeza do impacto que o Pantanal causa nas pessoas que estão à bordo da expedição "Experiência General Motors Serra do Amolar", ele recita um dos poemas mais famosos do escritor. “Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balança nem com barômetro etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”, disse.
O Campo Grande News participou da viagem sobre o Rio Paraguai, no último fim de semana, a convite da montadora americana, para conhecer o programa Felinos Pantaneiros. O projeto faz parte do IHP e passou a receber ajuda financeira e uma picape Chevrolet S10 para atividades em terrenos de difícil acesso, desde de março deste ano.
Para além do encanto que a natureza desperta em qualquer um que sobe o rio, em direção a Serra do Amolar, a 140 km de Corumbá, o que mais chama a atenção são as pessoas que trabalham no instituto. Homens e mulheres que lutam pela permanência da biodiversidade pantaneira, como uma missão de vida. Heróis sem capa, que enxergam o Pantanal com o coração.
Há 20 anos o IHP promove ações que aliam conservação ambiental, produção econômica e bem estar social, por meio do desenvolvimento sustentável. Buscando o conceito produtor de natureza.
Em 2008 surgiu a Rede Amolar (Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar). Uma parceria entre organizações proprietárias de terras destinadas a ações conservacionistas ao longo do eixo do Rio Paraguai. O desafio é fazer a gestão integrada entre parceiros para proteção de 276.000 hectares, sendo que 201.000 legalmente protegidos por meio de uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Privado).
No pé da Serra do Amolar fica a fazenda Acurizal. A propriedade já foi base dos primeiros estudos de onças-pintadas. No final da década de 70, George Schaller e Peter Crawshaw chegaram a monitorar onças com colares que possuíam transmissor VHF. Mas os animais foram mortos por caçadores, uma prática comum para aquela época. Por isso os pesquisadores decidiram deixar o local.
Hoje, a fazenda é administrada pelo IHP e retoma a pesquisa com os felinos que sobreviveram após gerações de caçadores matarem seus 'pais'. Quem faz parte dessa nova formação de pesquisadores do animal na maior planície alagada do mundo é o médico veterinário Diego Viana, 34 anos. Corumbaense, formado pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), ele coordena o programa Felinos Pantaneiros desde 2016.
Os olhos dele brilham ao explicar sobre onças-pintadas. “É a palavra que eu mais falo na vida, sem sombra de dúvidas". O programa quer garantir que a espécie ameaçada de extinção continue a existir no seu habitat da forma mais natural possível.
O mais impressionante na história de Diego é que ele é bisneto de caçador. Mesmo tendo o sangue do ex-matador de bichos, conhecido como Mané Bravo, correndo em suas veias, o médico veterinário afirma que promoveu um desfecho diferente na sucessão familiar. “Hoje o final para as onças-pintadas e para os seres humanos é positivo. Hoje eu deixo ela (a onça-pintada) viva.” (Confira o vídeo abaixo).
Diego faz ciência com os dados coletadas da espécie no Pantanal e junto com a equipe do IHP promove a mudanças de comportamento de outras gerações que convivem com a onça-pintada. Mais de 6 mil pessoas, entre adultos e crianças, foram orientadas nos últimos anos.
Um verdadeiro 'trabalho de formiguinha', pessoa a pessoa, que já fez com que o programa ficasse conhecido na região, a ponto de sempre ser comunicado a cada avistamento do felino. Se antes, o bicho era visto como animal que causava medo e vivia no imaginário como predador perigoso, hoje a onça-pintada é vista com o respeito que merece.
“As pessoas precisam entender o papel que temos como parte do Planeta e não como um ser superior. Dependemos dele para ser habitável. Se eu não cuidar do local que eu vivo, não conhecer ele, não estou desempenhando meu papel de ser um ser humano. Temos que cuidar da nossa casa, entender a nossa responsabilidade”, explica.
Além de orientar sobre a importância do animal para a conservação da biodiversidade, falando sobre o crime da caça, também é identificado pontos de ceva (pontos de descarte de alimentos feitos pelo homem para atrair o felino). O trabalho de conservação da espécie já rendeu ameaças implícitas ao médico-veterinário. Alguns moradores falam em matar onças quando ele está em Corumbá.
O objetivo no entanto é ajudar a garantir uma convivência harmônica entre homem e animal. Para isso, várias estratégias estão sendo aplicadas e fazendo a diferença. Por meio de pesquisa de análise de comportamento dos felinos, utilizando câmeras traps que são colocadas em locais estratégicos, colares de monitoramento e rastros dos animais é possível entender melhor os tipos de habitats mais usados pelas onças, melhor calcular o tamanhos das áreas utilizadas, ou mesmo identificar o local escolhido por uma fêmea para parir seus filhotes.
O Guató é a primeira onça-pintada capturada para instalação do rádio-colar na Serra do Amolar pelo IHP. Um macho jovem, de três a quatro anos, com cerca de 100 quilos. Com os dados do monitoramento, os pesquisadores terão as respostas sobre o comportamento da espécie que até agora não tinham e vão garantir a proteção da área em casos de desastres.
“O Pantanal é dos biomas mais bem conservados do planeta. Já são mais de 230 anos de ocupação humana e produção pecuária. Ou seja, é possível conviver, coexistir com a onça-pintada e toda a biodiversidade do Pantanal”, afirma.
Desta forma, o programa Felinos Pantaneiros emprega algumas tecnologias como repelentes-luminosos noturnos. O dispositivo é importando dos Estados Unidos e custa 90 dólares, sem contar as taxas de imposto. Ao todo já são nove espalhados entre casas de ribeirinhos que sofriam com ataques da onça-pintada aos seus cachorros. A ferramenta utiliza a luz do sol para carregar e durante a noite dispara uma série de cores que piscam com frequência diferente, assustando o bicho de se aproximar.
Outra forma de impedir que fazendeiros matem o animal é garantir a comprovação de tecnologias que agregam valores ao produto final. O médico veterinário explica que o programa já atua em algumas propriedades rurais no Pantanal que fazem o isolamento das maternidades, onde ficam os bezerros, alvos preferidos das onças, com cerca elétrica.
Os números de perdas reduziram significativamente. Passaram de 930 bois abatidos por onças-pintadas, para 220 só neste primeiro ano de implantação de cercas elétricas.
Desde o início do programa, em 2016, foram registradas 111 onças-pintadas diferentes na Serra do Amolar. No último mês foram confirmados 11 indivíduos distintos registrados por câmeras. O local é o segundo no mundo com maior incidência da espécie, com média de 8.3 indivíduos por km quadrado, atrás somente do Mato Grosso, com 8.5, conforme estudos da Fundação Panthera.
Lições - Falar em números é fácil. Mas a rotina de quem defende o Pantanal vai além dos resultados e imagens lindas divulgadas na imprensa. Qualquer pessoa que chega no coração do Pantanal é atacada por mosquitos. Por isso é comum ver os trabalhadores da região com calças e camisa, além de lenço no pescoço que protege de mosquitos e da força do vento quando se locomovem de barco.
Outro perrengue é a distância entre a cidade e a reserva. São horas de navegação de barco. Fora a grande área para conseguir uma fiscalização efetiva para a proteção da natureza. Por isso a conscientização com educação ambiental tem feito diferença, principalmente após os incêndios florestais de 2020.
Hoje é possível perceber o esforço do pantaneiro das águas em respeitar o local como um templo sagrado, sendo um verdadeiro guardião da natureza. Com a vegetação preservada, o acesso a determinadas áreas demora dias. Um exemplo da dificuldade de locomoção é a missão da equipe do Felinos Pantaneiros em encontrar o colar da onça-pintada Jou-Jou (nome em homenagem ao apelido da cozinheira boliviana que mora em Acurizal e alimentou as equipes de trabalho contra os incêndios).
Avaliado em R$ 20 mil, o colar de monitoramento de GPS do animal foi doado pelo cantor Luan Santana. O macho de aproximadamente quatro anos foi resgatado desfalecido, com as patas queimadas em novembro de 2020.
Na última semana o colar de Joujou se soltou conforme o previsto, comprovando a liberdade total e a readaptação à natureza. Mas até o momento as equipes não conseguiram localizar o dispositivo.
O sinal VHF continua sendo emitido, mas não possui precisão, já que pode ser ouvindo em um raio de cerca de 50 km de distância. Assim que encontrado, o programa Felinos Pantaneiros vai reativar o colar. Só que desta vez o objetivo é monitorar uma fêmea, para estudar as mudanças no comportamento dela, em relação aos dados já coletados com os machos monitorados até o momento.
Também foi possível ver a dor da equipe quando perde um animal. Diego contou que estava comemorando a soltura do colar de manhã e no mesmo dia foi acionado à noite para fazer a autópsia de um filhote de onça-pintada macho que foi atropelada na BR-262, considerada a estrada que mais mata no país. O IHP já contabilizou 14 onças mortas por atropelamento desde 2016.
A rodovia promove diariamente uma chacina da fauna pantaneira. Por dia 700 carretas passam pelo trecho que corta o Pantanal para transportar minérios até São Paulo. Em 2021, uma média de 20 mil animais silvestres foram encontrados mortos em decorrência de atropelamentos nesta rodovia, no trecho entre Campo Grande e Corumbá.
Além disso, Corumbá ainda não possui um Cras (Centro de Reabilitação de Animais Silvetres). Todos os bichos resgatados na região precisam ser encaminhados para Campo Grande. Para tentar minimizar o problema, o IHP está trabalhando para ativar um consultório veterinário na sede do instituto na Serra do Amolar, na fazenda Acurizal.
O médico veterinário do IHP, Geovani Tonolli, mais conhecido pelo apelido de Capixaba, explica que o local ainda está passando pelo processo de regulamentação e autorização pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária. "A expectativa é que nos próximos dois meses já esteja pronto para atender os animais dos incêndios florestais que possam ocorrer neste ano. Contamos com a equipe do GRETAP (Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal) para auxiliar nos resgates."
Depois da tragédia de 2020, o instituto também decidiu criar estratégias para diminuir o impacto do fogo na RPPN. A Brigada Alto Pantanal possui sete homens, sendo que quatro ficam na fazenda Acurizal. Os ribeirinhos da região também foram treinados com curso de brigadista, e podem atuar em situações extremas.
O comandante da brigada, Manoel Garcia da Silva, explica que vários aceiros (abertura de corredores na mata) foram feitos em uma área de 20 km da Serra do Amolar. Com os acessos mais fáceis, só 7% da área que a brigada atua foi atingida em 2021. Diferente dos mais de 90% queimados pelo fogo em 2020. A nova tecnologia implantada neste mês também dispõe de monitoramento de câmeras 24h por dia, com a rede Pantera. O combate que antes demorava 7 dias, agora começa em horas.
"O fogo é sinônimo de destruição. Quando chega é para dissipar. Foi muito difícil ver sucuri, cobras, anta, capivara mortas. Teve porco do mato que saia de dentro do mato vindo na nossa direção, porque estávamos jogando água. Eles gritavam, parecia que pediam socorro", relembra.
Para evitar nova tragédia é preciso que a população ajude. "Não conseguimos mudar uma cultura de gerações que mete fogo para plantar. Não podemos proibir porque a pessoa é dona da área, mas podemos orientar. As pessoas precisam entender que o fogo não respeita. É muito duro ver uma pessoa chorando porque perdeu tudo em um incêndio, como vimos aqui. Mas continuamos trabalhando. Se eu deixar isso aqui acabar, meu filho não vai conseguir ver o Pantanal."
Navegando pelo Rio Paraguai ainda é possível ver marcas da destruição. Árvores secas compõem o cenário. Em certos momentos, um lado do rio está completamente cinza. Os cipós verdes parecem abraçar os galhos pretos, como se quisessem fechar as cicatrizes deixadas pelo fogo. Alguns brotam flores brancas.
Moradores locais afirma que nesta época do ano os morros da Serra do Amolar estariam cheios de ipês rosas florescendo. Nenhum foi visto pela reportagem durante a viagem. Após quase dois anos dos incêndios não é possível ainda mensurar o impacto na fauna e na flora pantaneiro. Não houve apoio financeiro para estudos científicos. A única estimativa é que 16,9 milhões de animais morreram naquele ano, sendo sua maioria répteis.
Na época dos incêndios as doações que chegaram ultrapassou R$ 1 milhão, o que assustou os responsáveis pelas instituições que atuavam no local. Mas lamentavelmente após a tragédia poucos lembram da importância da preservação do bioma e ajudam o trabalho no local.
Futuro - Para o presidente do IHP, coronel Rabelo, uma das maiores preocupações no momento são com os 'novos pantaneiros'. Pessoas que estão comprando áreas no Pantanal e que não conhecem a importância da preservação do bioma.
"Temos uma história que é do homem pantaneiro, de muito respeito à natureza e que agora estamos passando por uma transição que é o novo pantaneiro, que está chegando e traz uma nova cultura. Ainda não temos segurança que ela seguirá os mesmos princípios e valores que o pantaneiro constituiu", diz preocupado.
A cada novo morador pantaneiro, Rabelo vai em busca do diálogo. "É um trabalho pessoa a pessoa. Ouço muito quando chega um novo fazendeiro. Vou lá conversar. Uma via sacra que precisa de dedicação."
Também é preciso de ajuda para projetos de pesquisa. O IHP tem lutado para trazer uma especialista em morcegos para o Pantanal. "Eles são importantes para polinizaçaõ. São projetos como este que ajudam a responder coisas importantes como a própria dispersão de sementes. Mas que ainda precisa de apoio para concretizar."
O novo mercado de carbono é uma das alternativos para ajudar a pagar o custo de manutenção das áreas preservadas, que por ano chega R$ 1,5 milhão. Rabelo revelou que está fechando patrocínio com a ISA CTEEP, empresa colombiana que criou o programa Conexão Jaguar, para proteger a onça-pintada da Colômbia até a Argentina.
"Somos os primeiros no Brasil a fazer parte do programa. Criar mecanismos que garantam a proteção das espécies é a forma mais inteligente de continuar o trabalho. Além da redução de emissão de gases, desmatamento evitado, temos o adicional da biodiversidade. Se o carbono normal vale 10 dólares, com o componente da biodiversidade valerá 15 dólares", explica.
Nos últimos três anos o IHP tem buscado a validação para comprovar a área que faz o sequestro de carbono para conseguir o certificado e habilitação no programa. "Estamos otimistas que dos 300 mil hectares, cerca de 130 mil serão habilitados para merecer o crédito. Com isso vamos ao mercado para vender esse crédito para ter receita e manter as áreas".
A estimativa é que o recurso resulte em R$ 700 mil por ano, cerca de 70% do necessário para manter as áreas. E o melhor, será um processo de médio a longo prazo, com contrato de 20 anos, podendo ser prorrogado por mais dez.
"Temos um conjunto de áreas que hoje no valor de mercado valeriam algo em torno de R$ 300 milhões. Temos as áreas consideradas pelo governo como de extrema importância de biodiversidade que possuem um custo de manutenção, mas a conta não fecha. Precisamos buscar novos parceiros, captar recursos, com editais, concursos, para poder manter a receita necessária para assegurar os colaboradores aqui."
Hoje são 12 colaboradores morando nas áreas, sem contar o custo de logística que o IHP possui para realizar os programas. Por isso, até o investimento em ecoturismo na região com o Programa Amolar Experience tem feito parte das ações que ajudam ao custeio do local.
O apoio da GM por exemplo faz diferença para o instituto. "A gente começa a ver com essa iniciativa uma outra postura de maturidade e de respeito das empresas que percebem que precisam compartilhar seus lucros, olhar as externalidade e de fato assegurar que algumas ações fazem parte do seu investimento e não de uma conta", afirmou.
O diretor de Estratégia de Comunicação da GM América do Sul, Nelson Silveira, explicou que a ação faz parte do objetivo da montadora de ter um futuro zero acidentes, zero emissão e zero congestionamento.
"A GM investiu 35 bilhões de dólares até 2025 para lançar 39 veículos elétricos em todo o mundo. O objetivo até 2040 atingir neutralidade em carbono, tanto em produtos, quanto em operações. O apoio de biodiversidade é essencial nesse trabalho de preservar e construir um futuro melhor para as próximas gerações", justificou Silveira.
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