"Crueldade", apontam especialistas sobre projeto que equipara aborto a homicídio
Defensora pública Zeliana Sabala e a psicóloga Jacy Curado apontam que o PL 1904/24 fere direitos das mulheres
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou na terça-feira (18) o adiamento do debate sobre o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação a homicídio. Lira também informou que será criada uma comissão para discutir o projeto de lei e que a proposta será debatida no segundo semestre, após o recesso parlamentar.
O adiamento desse debate foi um dos temas abordados no podcast "Na Íntegra" do Campo Grande News, nesta quarta-feira (19). Quem fala sobre o assunto é a defensora pública Zeliana Luzia Delarissa Sabala, que coordena o Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher); e a pós-doutora em Psicologia Social e vice coordenadora do Observatório de Violência Contra a Mulher, Jacy Curado.
Elas indicam que o adiamento dessa decisão está ligado à pressão da sociedade civil, manifestada por protestos em todo o país, inclusive, em Campo Grande. “Foi uma conquista, e algo espontâneo, ao meu ver. Eu estive na manifestação. Tinha muitos jovens, homens e mulheres jovens. Eu vi que não era algo tão estruturado e muitos estavam movidos pela indignação. Mostra que a maioria da população brasileira não aceitaria essa PL”, explica Jacy.
Cercada de polêmicas, alguns grupos, inclusive parlamentares, defendem que a medida busca proteger a vida do feto. Entretanto, a defensora pública Zeliana, aponta que esse projeto de lei pode ser visto como inconstitucional e representa uma violação dos direitos das mulheres.
“Ele [PL 1904/24] é contra tudo o que as normativas internacionais e nacionais preveem como garantia de direitos. Quando falamos disso, estamos pensando na sociedade como um todo, porque, se não preservamos o direito das mulheres, não estamos dando importância para a própria evolução da sociedade. As mulheres representam mais de 50% da população. Costumamos dizer que 50% são mulheres e os outros 50% são filhos dessas mulheres. Portanto, estamos falando dessa violação efetiva, insistente e cruel de direitos”, aponta Zeliana.
Grupos de defesa dos direitos das mulheres têm se manifestado contra o projeto e alegam que ele pode criminalizar mulheres em situações de vulnerabilidade social e levar a um aumento de procedimentos inseguros e clandestinos.
Zeliana também explica, que inclusive, essa criminalização do procedimento em casos de estupro pode afetar especialmente as crianças e adolescentes que foram vítimas de violência sexual.
Se pensar em uma menina de 13 ou 14 anos, é um estupro de pessoa vulnerável. E ela não tem consciência acerca do seu desenvolvimento corporal. Então ela própria demora a identificar que está grávida. Se demora a identificar que está grávida, ela demora a identificar que foi vítima de uma violência e demora a buscar o serviço. Então nós não podemos já falhamos como sociedade. Não podemos falhar uma segunda vez”, comenta Zeliana.
Em uma reportagem feita pelo Campo Grande News, foi apontado que um total de 4.521 meninas de até 14 anos foram mães em Mato Grosso do Sul nos 10 anos de intervalo entre 2013 e 2023, de acordo com dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos do Ministério da Saúde.
Este ano, já foram registrados 87 nascimentos assim no mesmo sistema. Importante mencionar que o Código Penal aponta que ter relação sexual com menor de 14 anos é crime de estupro de vulnerável, mesmo que seja alegado consentimento.
A psicóloga Jacy também aponta que há uma “cultura da violência” presente na formação cultural do Brasil. Segunda ela, muitas mulheres estão totalmente despreparadas para identificar os riscos de uma relação abusiva - algo que pode ser mais complicado de identificar quando se é uma criança.
É impressionante ver mulheres altamente qualificadas se envolverem em relações abusivas e narcísicas. Se elas têm dificuldade em se proteger, imagine como as crianças poderiam conseguir se proteger”, aponta a psicóloga Jacy.
Para Jacy, o PL 1904/24 acaba por forçar crianças a assumirem a maternidade, quando ainda estão despreparadas em relação a própria sexualidade. “Eu vejo isso, é forçar crianças a serem mães, e acabam não tendo a oportunidade de viver uma sexualidade segura, plena, madura, porque não é para uma criança de 14 anos de 12 anos ter relação sexual. Agora, ainda tem que se tornar mãe. É muita crueldade”, aponta a psicóloga Jacy.
Educação como solução - A sexualidade é uma dimensão fundamental do ser humano. Ela acompanha as mulheres ao longo de suas vidas e influencia suas relações afetivas, a forma como conhecem e nomeiam seus próprios corpos, e como aprendem sobre consentimento, privacidade, prazer e violência.
Segundo Jacy e Zeliana, aprender sobre sexualidade é crucial para desenvolvê-la de maneira saudável e para saber pedir e oferecer ajuda quando necessário. Ambas destacam que as escolas deveriam ser espaços dedicados a essa discussão. “É uma luta diária, porque a gente preza por essa educação. Buscamos mostrar para as mulheres o que significa estar em um ciclo de violência. Por exemplo, ensinamos como identificar se existe uma situação permissiva ou abusiva dentro de casa”, explica Zeliana.
Já a psicóloga Jacy, aponta que a educação sexual também colabora com a prevenção do risco de abortamentos. “Precisamos fortalecer o serviço de aborto legal, que já existe e foi construído com muita luta. Eu gostaria muito que não fosse necessário ampliá-lo, mas a verdade é que precisamos mudar a cultura e investir em educação. O aborto não é um método preventivo e não é desejado por ninguém. Nenhuma mulher pensa: "vou fazer um aborto." Devemos ampliar nossa visão e promover campanhas contra o estupro e a violência sexual. Precisamos focar em preparar os jovens para essas questões”.
Confira a entrevista na íntegra a seguir:
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