“Equiparar aborto a homicídio é medieval”, diz promotor do maior caso do País
Douglas Odelgardo foi responsável pela acusação no "Caso das 10 mil", contra clínica de aborto de Neide Mota
Promotor que atuou no chamado “Caso das 10 mil” em Campo Grande, o maior processo sobre aborto ilegal no Brasil, Douglas Odelgardo Cavalheiro dos Santos afirma que o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto de feto com mais de 22 semanas ao crime de homicídio, inclusive em caso de estupro, é medieval e viola tratados internacionais do quais o País é signatário.
“O projeto de lei traz esse aumento de pena que é uma coisa medieval. Viola uma série de tratados internacionais com os quais o Brasil é comprometido. Dentre eles, tratados que preservam direitos civis fundamentais, que preservam direito à igualdade. No caso do aborto decorrente do estupro, você está punindo com maior gravidade a mulher que aborta do que o estuprador. Tem a questão da proporcionalidade da pena, que é amparado por tratados internacionais”, afirma Douglas.
Desta forma, mesmo se aprovada, a mudança pode ter a constitucionalidade questionada no STF (Supremo Tribunal Federal).
Outro grave efeito colateral caso a proposta consiga ser aprovada no Congresso Nacional é de que a definição do limite de 22 semanas para o procedimento dificulta até o aborto legal. As 22 semanas correspondem ao fim do quinto mês de gestação.
“Na prática, a gente sabe que elas ficam inviabilizadas por causa da burocracia. Principalmente no caso de estupro, entre a constatação da gravidez e a obtenção da autorização legal para a realização do aborto, você não consegue fazer no prazo de 14 semanas. Se você limitar a 22 semanas, está eliminando a hipótese de aborto legal. Vai jogar todos os abortos para a clandestinidade”, diz o promotor.
O aborto é crime no Brasil, mas desde 1940, dentro do Código Penal, existem três exceções: estupro, feto anencéfalo e quando a mulher corre risco de morte. Atualmente, o texto legal não prevê restrição de tempo para o procedimento.
Caso o projeto seja aprovado pelos parlamentares, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos. A pena é a mesma prevista para o homicídio simples. Já a pena para estupro vai de 6 a 10 anos.
No início do mês, a Câmara aprovou, em votação simbólica, o regime de urgência para o projeto de lei ir a plenário sem passar pelas comissões. Diante da repercussão negativa, a proposta só deve ser votada no segundo semestre.
“O parlamento sequer chegou a se sentar para analisar, foi apenas a votação para o regime de urgência. Mas isso já bastou para causar efeito sísmico na nação”, destaca o promotor.
Caso das 10 mil – Em 10 de abril de 2007, reportagem da TV Morena mostrou que clínica de planejamento familiar de Campo Grande era local especializado em aborto ilegal, confirmando o que circulava há décadas na boca do povo. Na sequência, a Polícia Civil fez apreensões de arquivos com 9.986 nomes de mulheres que passaram pela clínica em 20 anos.
As mulheres que abortaram não chegaram ir a júri popular. Mas, os nomes abertos no processo, na fase judicial, as tornaram alvos da curiosidade pública, enquanto a Igreja Católica convocava coletiva para cobrar medidas punitivas. De tempos em tempos, o processo volta a ecoar uma pergunta: o Ministério Público foi muito "severo” com as mulheres?
A questão faz o promotor descolar as costas da poltrona, cruzar os braços em cima da mesa, mirar os olhos da interlocutora e devolver o questionamento, lembrando que a pergunta é retórica. Não se busca necessariamente uma resposta, mas abrir caminho para sua reflexão.
“Até hoje eu me pergunto e pergunto para as pessoas que dizem isso: o que o Ministério Público poderia ter feito a mais para aquelas mulheres dentro da legislação vigente? O que o Ministério Público poderia ter feito a mais pelas mulheres que foram processadas em razão do desvendamento dos arquivos da clínica da doutora Neide Mota?”, questiona o promotor.
Ele relata que foi preciso dois anos de trabalho para levantamento em quase dez mil fichas. A varredura era para identificar casos em que já havia prescrição do crime. Do total, pouco mais de oito mil estavam prescritos.
“Mas a grande preocupação não foi essa. A grande preocupação foi que aquilo não vazasse na polícia e nem do Ministério Público. E de fato não vazou. As pessoas tiveram uma grande crise com relação a identificação porque quando virou processo era possível consultar o nome no sistema. Porque o Poder Judiciário tem os processos criminais disponibilizados no sistema eletrônico. Eu não vou aqui fazer juízo de valor sobre a decisão do doutor Aluízio. Ele recebeu centenas de pedidos de decretação de sigilo, de pessoas que estavam ali porque tiveram relação extraconjugal, tiveram que praticar aborto porque eram vitima de violência sexual intrafamiliar, vitimas de violência sexual extrafamiliar, foram vítimas de violência sexual no trabalho. Aquilo era um segredo escondido da família. Mas a decisão de não se decretar o sigilo foi do Poder Judiciário”, rememora o promotor.
De acordo com Douglas, havia a defesa da tese da prescrição virtual. Neste entendimento, se considera a pena que poderia, hipoteticamente, ser aplicada ao réu. “Historicamente, o Ministério Público nunca concordou com essa tese”. Foram oferecidos acordos de suspensão do processo para todas as demais mulheres.
“Tanto é que não tivemos nenhum júri. E nós tivemos muitas dificuldades, muitas não foram colaborativas. Estavam fora do País, fora da cidade. Estavam aqui, mas se recusavam a vir ao Fórum. E nós tínhamos que fazer trabalho imenso de convencimento por telefone. É uma audiência simples, rápida, de cinco minutos, ninguém vai te ver. Mas se você não vier aqui, não existe alternativa, seu nome está na ficha, a materialidade está consumada, a autoria está confirmada, você vai a júri. Foram dois anos de trabalho para que ninguém fosse a plenário”.
Em abril de 2010, a ex-funcionárias da clínica foram condenadas por aborto ilegal. A médica se suicidou antes do júri popular.
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