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Reportagens Especiais

Ao instalar telégrafo no sul do antigo MT, Rondon encontrou onças e piranhas

Muito antes da criação de MS, Marechal Rondon relatava os desafios e belezas de "vilas promissoras"

Por Silvia Frias | 11/10/2023 07:11
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Inauguração da estação telegráfica em Aquidauana (Foto/Reprodução)
Inauguração da estação telegráfica em Aquidauana (Foto/Reprodução)

Sete décadas antes da divisão do Estado, a região sul do então Mato Grosso já era considerada estratégica e de potencial desenvolvimento. As belezas naturais, os perigos e desafio das “vilas promissoras” são detalhadas nos diários de Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, durante a expedição para instalação das linhas telegráficas, de 1900 a 1906.

Nos relatos, Rondon descreve a dificuldade de atravessar o Pantanal em áreas alagadas, a caça às onças, os ataques mortais das piranhas e fala de grande enchente em Porto Murtinho, que deixou a população aterrorizada e povoado em “estado desolador”.

Rondon sentado em acampamento da Comissão Rondon, sem data (Foto: Museu do Índio)
Rondon sentado em acampamento da Comissão Rondon, sem data (Foto: Museu do Índio)

A “Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégias no Estado de Mato Grosso”, comandada por Rondon, faria a ligação de Cuiabá a Corumbá, prolongando-se até as fronteiras do Paraguai e da Bolívia.

No livro “Rondon Conta sua Vida”, a escritora Esther de Viveiros colheu o depoimento do militar, que detalhou todo o processo e o motivo de o governo querer a ligação, para que permitisse “constante comunicação com aquelas longínquas paragens e, desse modo, sobre elas exercer proveitosa vigilância”.

A empreitada começa em 1900, formada com praças de Goiás e de Mato Grosso, além de civis contratados para trabalhos pesados, telegrafistas e guarda-fios cedidos pela Repartição Geral dos Telégrafos e indígenas. “Ele tinha estratégia boa, fez amizade com os indígenas, utilizava o conhecimento e a mão de obra deles", explica o professor e historiador Braz Leon.

Ao longo dos anos, por conta do desfalque na tropa, seja por malária ou deserção, o próprio Rondon se incumbiu de fazer a expedição prévia para traçar a rota das linhas e retornava depois, já com a comitiva. As áreas também não eram de total desconhecimento do militar: descendente dos indígenas bororo, guaná e terena, Cândido da Silva Rondon nasceu em Mimoso (MT).

Rondon em foto com os indígenas parecis, no norte de Mato Grosso, durante a expedição (Foto: Museu do Índio)
Rondon em foto com os indígenas parecis, no norte de Mato Grosso, durante a expedição (Foto: Museu do Índio)


Expedição – O trabalho seguia várias etapas: a expedição prévia, depois, a passagem da comitiva. As frentes de execução eram realizadas em vários trechos ao mesmo tempo. Os praças extraíam árvores usadas como postes telegráficos, transportados para área de picada, onde eram levantados; depois, a equipe esticava os fios e, posteriormente, ainda tinha a construção ou compra do imóvel que serviria de agência telegráfica.

Na travessia, a Comissão Rondon contava com ajuda de fazendeiros da região e montavam acampamentos para execução do serviço. As tralhas eram carregadas em lombos de burro e mantimentos também chegavam por carretas, nos caminhos onde as águas não dominavam o trajeto. Em alguns momentos, a tropa enfrentava a fome, à espera da chegada do alimento.

No relato feito à escritora, Rondon conta que a comissão chegou na região de Coxim em 17 de maio de 1901. Nesse trecho, perdeu auxílio dos bororo, indígenas que o ajudaram durante um ano, empreitada iniciada em Goiás. Um deles disse ao militar: “aqui fico; bororo não entra em terra de caiamo, terra de terena, guaicuru, uachiri”.

No trajeto da Comissão Rondon, o Pantanal se desvendava e se mostrava belo e perigoso. O marechal relata o dia em que um dos cachorros da tropa quase foi engolido por uma sucuri. “Esse incidente alvoroçou todo o acampamento. Os soldados ficaram preocupados com o perigo a que se achavam expostos no Pantanal”.

Em Rondônia, a amostra do trabalho realizado pela Comissão Rondon (Foto/Reprodução)
Em Rondônia, a amostra do trabalho realizado pela Comissão Rondon (Foto/Reprodução)

Depois da inauguração da estação em Coxim, Rondon partiu para exploração do Rio Taquari até Paraguai-Mirim, para estudar melhor o traçado para a linha em Corumbá. Na construção da linha, relata que poderiam usar angico, aroeira e outras madeiras de lei, próprias para postes.

Em março de 1902 chegou em Aquidauana, “a vila fundada em 1894 e de muito promissor desenvolvimento”. Descreveu, ainda: “(...) é muito bem colocada, em planalto, com algumas baixadas apenas junto às barrancas do rio”.

No diário, descrevia as inaugurações, como a instalada no Corixão. “Muito se trabalhou na preparação dos postes, na ornamentação do edifício da estação (...). O dia 2 [de maio de 1902] foi empregado em ultimar os preparativos para a inauguração da linha: terminou-se a limpeza da praça e da rua, preparou-se um caramanchão, colocaram-se bandeirinhas, deram-se os últimos retoques. No dia 3, data do Descobrimento do Brasil, foi solenemente inaugurada a estação, com um banquete e um baile, sendo no ato da inauguração franqueada ao público a sala dos aparelhos".

Rondon citou várias dificuldades para a instalação dos postes, como local denominado por ele como Morro do Guaxi. “A chamada areia-manteiga não permitia que se fizessem buracos; era, pois, necessário fazer ponta nos postes para que se cravassem pelo seu próprio peso até encontrar argila. Impossível nessas condições levantar mais de seis postes por dia quando era de 100 a nossa média diária”.

Rondon com oficiais da Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso (Foto: Museu do Índio)
Rondon com oficiais da Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso (Foto: Museu do Índio)

Também era marcado por encontros com os indígenas. Em maio, fazia o reconhecimento da área para estudar trecho alternativo para o Taboco. “Foi aí que pela primeira vez vi índios nachiri, ou guaxi. Desciam na seca pelo Rio Negro e estendiam suas incursões pelo Pantanal afora em busca de caça”, segundo relato dele no livro “Rondon Conta sua Vida”. Guaxi era outro nome dado aos ofaié. Hoje, conforme site da Funai (Fundação Nacional do Índio), há apenas 148 pessoas da etnia ofaié-xavante em MS, vivendo em Brasilândia.

Perigos – Nos capítulos que trata da Comissão Rondon por Mato Grosso uno, o marechal descreve, em vários trechos, o encontro das equipes com a natureza.

Em um trecho, sobre passagem por Corumbá, em novembro de 1903, Rondon relatou a morte do alferes aluno Francisco Bueno Horta Barbosa. O rapaz foi designado para trabalhar no "trecho do Saram" para instalação dos postes. Passados cinco dias, ele ainda não tinha voltado. Rondon resolveu seguir o trajeto e encontrou o soldado Lourenço, que contou que Barbosa havia morrido.

Na travessia, o burro em que Barbosa estava montado o atirou na água. “A mordedura das piranhas fez o animal corcovear e correr para a margem, deixando o cavaleiro entregue aos ferozes peixes. Cessou assim uma tão promissora existência (...). As piranhas, pequenos e voracíssimos peixes, só não tinham podido devorar as pernas, na parte protegida pelas botas. O esqueleto estava limpo. Foi, entretanto, possível identificá-lo pelo vestuário e por alguns objetos que lhe pertenciam.

Rondon (de chapéu nas mãos), em 1905, ao lado do túmulo de Coronel Camisão, em Nioaque (Foto: Departamento de Imprensa Nacional)
Rondon (de chapéu nas mãos), em 1905, ao lado do túmulo de Coronel Camisão, em Nioaque (Foto: Departamento de Imprensa Nacional)

Em várias passagens, cita o encontro com onças-pintadas. Várias foram caçadas no percurso, como em março de 1905, na exploração da região do Rio Negro. “Não foram poucas as onças que avistamos nas margens, mas a brevidade do tempo disponível não nos permitia persegui-las. Matamos ainda, contudo, uma que estava estirada, aquecendo-se ao sol numa árvore seca atravessada sobre o rio”. Em um percurso, contou 11 onças-pintadas, todas de grande porte.

Também enfrentou as mudanças climáticas. Após inauguração da estação de Corumbá, em janeiro de 1904, a 1ª seção começou os trabalhos para a construção do ramal de Miranda a partir de Aquidauana. No reconhecimento da área, se deparou com a seca. “Verdadeiras lagoas quase desapareciam, e a fauna lacustre modificava seus hábitos. Os jacarés, arquejantes pela falta de água, saíam pelo campo à procura dos veadinhos que vinham matar a sede”.

Na expedição para ligar Aquidauana a Porto Murtinho e Bela Vista, enfrentou grande enchente. Em 1905, recebeu notícia da inundação do povoado de Porto Murtinho, com cerca de 3 mil habitantes, uma “população aterrorizada que pedia socorro”.

Rondon foi até a localidade de chalana e encontrou tudo inundado. “Fui, então, ver o deplorável estado em que ficara o povoado. Com água pelas ruas e dentro das casas, mantinham-se estas profundamente mergulhadas numa desolação aterradora. O povoado só era habitado pelos peixes, que boiavam nas ruas e praças como se estivessem nas baías (...)”.

“O serviço prosseguia, apesar de tudo, depois de tomadas as necessárias providências para fazer face, ainda, ao desânimo e às deserções”, continua Rondon. As linhas de Porto Murtinho e Bela Vista foram inauguradas entre 1905. Nessa última etapa, enfrentou frio abaixo de zero. “Consegui inaugurar a Estação de Bela Vista. Coroamos assim nossos trabalhos no sul do Estado com um golpe de ação, construindo essa linha em um mês, com 100 praças apenas — 61 km e 590 metros de linha assentada de Bela Vista até Margarida”.

Em 70 meses de trabalho, de 1º de outubro de 1900 a 1º de agosto de 1906, foram construídos 1.746 km de linha, servindo 17 estações. A fronteira do Paraguai passou a ser ligada por dois pontos: Porto Murtinho e Bela Vista, e da Bolívia por outros dois, em Corumbá e Coimbra. Como trabalhos preparatórios, realizaram-se 4,1 mil km de reconhecimento e cerca de 600 de exploração parcial.

“Hoje no Estado ainda temos lugares de difícil acesso, se você retroagir no tempo, aquela época era muito mais difícil. Então, o trabalho dele, juntamente com o apoio que teve, o pessoal que acreditou no projeto dele, é um trabalho de persistência”, descreveu o professor e historiador Yhuls Bueno.

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