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Reportagens Especiais

Legado de Mãe Cacilda é poder religioso que mantém a comunidade viva

Fama de curandeira da filha de fundadora levou nome da comunidade para além de Corumbá

Por Silvia Frias | 20/02/2024 08:00
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Natalícia, a dona Cotó fala da vinda da família em MS; ao fundo a foto de Mãe Cacilda e, no detalhe, Pai João de Minas (Foto: Marcos Maluf)
Natalícia, a dona Cotó fala da vinda da família em MS; ao fundo a foto de Mãe Cacilda e, no detalhe, Pai João de Minas (Foto: Marcos Maluf)

Na década de 1970, a humilde tenda religiosa no Bairro Nossa Senhora de Fátima era pequena para as centenas de pessoas que chegavam de todos os cantos do país, diariamente, em busca do toque das mãos pretas de Mãe Cacilda, a mais famosa mãe de santo de Corumbá, município 428 quilômetros distante de Campo Grande.

Cacilda Astrogilda Gonçalves Barbosa de Paula era mato-grossense e chegou pequena a MS, trazida nos braços de Maria Theodora Gonçalves de Paula, uma ex-escravizada que fincou suas raízes em Corumbá e abriu caminho para a formação de uma das três comunidades quilombolas já certificadas no município.

Terreiro Nossa Senhora da Conceição, localizado em Corumbá (Foto: Marcos Maluf)
Terreiro Nossa Senhora da Conceição, localizado em Corumbá (Foto: Marcos Maluf)

“Minha mãe curou muita gente, de todo o mundo”, garante Natalícia Gonçalves Barbosa, 64 anos, a dona Cotó, atual liderança religiosa da Tenda Nossa Senhora da Conceição.

Nas paredes do terreiro, quadros apagados mostram pedaços da fama nos áureos tempos: Mãe Cacilda, com cachimbo na boca e com as mãos na cabeça de um rapaz que buscava a cura para sinusite, em Bauru (SP), em 1976, e fragmentos de documentos com homenagens prestadas.

No Brasil, as raízes dos mais antigos da família são de alguma região “para lá de Minas”, marcada pelo período escravocrata. Mas foi em Mato Grosso que a história de escravidão mudou. O avô, Mariano Gonçalves de Paula, conheceu Maria Theodora, em uma fazenda. “Ele roubou minha avó, porque ela estava sendo maltratada lá”. Em documentos pesquisados pela reportagem consta a informação de que Mariano pagou uma certa quantia pela alforria dela, sem data precisa.

Na parede, registro do atendimento feito por Mãe Cacilda, em Bauru (Foto: Marcos Maluf)
Na parede, registro do atendimento feito por Mãe Cacilda, em Bauru (Foto: Marcos Maluf)

Os dois seguiram viagem, em Mato Grosso, “num matão”, diz a neta. O casal ficou por lá, formou família e Cacilda nasceu em Cuiabá.

Natalícia diz que o casal resolveu descer Mato Grosso. Mariano trabalhava como cozinheiro de navio e a família viajou escondida em um compartimento. “Ele roubava comida e dava para eles”. Em 1920, pelo Rio Paraguai, eles chegaram a Corumbá. Moraram em alguns bairros antes, mas se fixaram no Nossa Senhora de Fátima, local de mata fechada, cheia de bichos, mas muitas frutas silvestres. No total, Mariano e Maria Theodora tiveram 10 filhos.

Em 1972, registro da fila de pessoas em busca da cura (Foto/Arquivo/Correio do Estado)
Em 1972, registro da fila de pessoas em busca da cura (Foto/Arquivo/Correio do Estado)

Em pesquisa de documentos e reportagens antigas, consta que Mãe Cacilda nasceu no dia 15 de novembro de 1936, ou seja, depois da data de chegada em Corumbá, o que pode ser registro tardio do nascimento, já que a família não soube detalhar datas.

Enquanto Mariano saía para trabalhar, Maria Theodora era a liderança da família. “Morreu velhinha”, diz Natalícia, sem precisar quantos anos. De pés achatados, a matriarca não conseguia usar sapatos e andava descalça sempre. Foi infectada pelo tétano depois de pisar em um osso de galinha, contou a neta. Já o avô morreu com 122 anos, afirma.

O legado foi continuado pelos filhos, mas, principalmente por Cacilda, que levou o nome do bairro para longe. Natalícia conta que a mediunidade da mãe começou cedo.

Com 14 anos ela pegou o espírito do Pai João de Minas, ele era de Caeté [MG], preto velho, médico de senzala”, contou Natalícia.

Maria Theodora e Mariano vieram de Cuiabá para Corumbá (Foto/Arquivo familiar)
Maria Theodora e Mariano vieram de Cuiabá para Corumbá (Foto/Arquivo familiar)

Se tornou praticante da umbanda e casou-se com pai de santo, Nadinho Gonçalves Dias de Paula, com quem teve oito filhos. Trabalhava como cozinheira e também atendia na tenda. A fama chegou na década de 1960, quando Mãe Cacilda teria feito um paraplégico de 12 anos andar.

O terreiro de umbanda de sapé lotava. Vinha gente de avião, trem e barco, o que causou problemas como lixo acumulado e comércio no entorno, situação que precisou da intervenção da prefeitura para controlar a movimentação.

Uma das famílias atendidas por ela doou o terreno e construiu o Terreiro Nossa Senhora da Conceição. A tenda de alvenaria é ampla, de chão batido e com as inscrições “damas” e “cavalheiros” na madeira de sustentação, próxima ao teto. Ao fundo, as imagens de santos e velas indicam que a casa se mantém em atividade.

Cacilda morreu no dia 8 de agosto de 2000, de problemas no coração. A família, diz Natalícia, herdou a mediunidade e diz que Pai João de Minas se manifestou, avisando a eles que a missão da matriarca foi cumprida e o tempo terreno se expirou. “Isso foi no dia 3, ela ainda fez a louvação, com missa e almoço do preto velho dela. Aí ela fez a passagem cinco dias depois”, contou. “Não sofreu”.

Na quadra, ainda há outro terreiro, o Nossa Senhora da Guia, ou a Tenda do Joãozinho, comandado por João Gonçalves de Paula, o Joãozinho, neto de Mãe Cacilda, que se esquivou e não quis falar com a reportagem. Os descendentes ainda vivem nos bairros Aeroporto, Dom Bosco, Nova Corumbá e Jardim dos Estados

Tenda foi construída para Mãe Cacilda em terreno doado após cura (Foto: Marcos Maluf)
Tenda foi construída para Mãe Cacilda em terreno doado após cura (Foto: Marcos Maluf)

Reconhecimento – A Comunidade de Família Maria Theodora Gonçalves de Paula (ACTHEO) teve a certificação expedida pela Fundação Cultural Palmares no dia 19 de dezembro de 2011, mas ainda não tem titulação emitida pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

O professor João Batista Alves de Souza pesquisou as comunidades quilombolas em Corumbá para tese de doutorado em 2021, que conquistou o Prêmio Capes de Teses na categoria Geografia. Na época, identificou conflitos envolvendo posse de terra, além da construção de empreendimentos imobiliários que ameaçavam a estrutura do terreno.

Na mesma rua, outro terreiro é mantido pela família, o Nossa Senhora da Guia (Foto: Marcos Maluf)
Na mesma rua, outro terreiro é mantido pela família, o Nossa Senhora da Guia (Foto: Marcos Maluf)

Segundo o professor, a ACTHEO é a única não ribeirinha em Corumbá. Os moradores trabalham na atividade informal ou auxiliam no setor privado, com prestação de serviços em hospitais, construção civil, mercados e lojas.

A principal resistência da comunidade está na comunhão e religiosidade expressada no terreiro de umbanda e nas tendas de Nossa Senhora da Guia e de Nossa Senhora da Conceição”, abordou o professor João Batista no estudo. Mesmo os católicos ou evangélicos frequentam ou auxiliam nos terreiros da família.

A comunidade é muito conhecida na cidade, sendo facilmente localizada quando se pergunta onde mora o “pessoal de Cacilda”. A exemplo das outras duas certificadas pela Fundação Palmares – Família Ozório e Campos Correia, sofre com a vulnerabilidade social. “A falta de titulação leva a não ter direitos, faltam políticas públicas”, avaliou o professor.

Maria José diz que sente falta de ações da comunidade, como oficinas (Foto: Marcos Maluf)
Maria José diz que sente falta de ações da comunidade, como oficinas (Foto: Marcos Maluf)

Natalícia diz que a comunidade não tem qualquer apoio do Município e os terreiros vivem de doações e recursos de familiares.

A aposentada Maria Gonçalves Dias, 62 anos, prima de Natalícia, estava na varanda de casa, sentada, observando o movimento. “Nasci aqui em Corumbá, estou aqui no bairro há 50 anos”, conta. Estende o braço e mostra a rua. “A quadra inteira é da família”.

Maria José diz que sente falta de ação da associação para organizar oficinas para a comunidade, como pintura ou de trancista. O mesmo pedido é feito pela cozinheira Benedita dos Anjos de Paula Barbosa, 61 anos, neta de Maria Theodora. “Não tem um barracão para dar curso”.

Benedita, outra neta de Maria Theodora, nascida e criada na comunidade (Foto: Marcos Maluf)
Benedita, outra neta de Maria Theodora, nascida e criada na comunidade (Foto: Marcos Maluf)

A reportagem tentou contato com a presidência da associação, que não respondeu aos questionamentos.

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