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A lama de Bonito, por um marco regulatório no processo de restauração

Por Thomaz Lipparelli (*) | 06/05/2019 11:18

A região de Bonito (MS) é conhecida por suas águas cristalinas que atraem turistas de todas as regiões do país e do exterior. Entretanto, o avanço do desmatamento na região e a não aplicação das recomendações técnicas de proteção ao solo, estão contribuindo com os altos índices de turbidez registrados em suas águas. A lixiviação do solo, em decorrência das fortes chuvas na região, é a causa primária do grande aporte de sedimentos nos rio Formoso em Bonito (MS) e no rio da Prata em Jardim (MS).

Este desastre ambiental afastou os turistas da região, causando prejuízos econômicos e sociais. Do ponto de vista ambiental ainda é muito cedo para um diagnóstico preciso, entretanto, a resiliência ambiental aponta para uma recuperação lenta e gradativa, se algumas medidas técnicas forem rapidamente tomadas.

Por sua vez, o Ministério Público Estadual instaurou inquérito para apurar as irregularidades e o Governo do Estado de Mato Grosso do Sul publicou uma normativa, orientando os proprietários rurais dos municípios de Bonito e Jardim da necessidade de apresentarem um projeto técnico de manejo e conservação do solo, antes de aplicarem ações mecanizadas de preparo de suas lavouras.

Infelizmente, este desastre ambiental acabou expondo (i) a fragilidade econômica e ambiental da região, possuidora de importantes atributos ecológicos ou ecossistemas sensíveis legalmente protegidos, (ii) a existência de um conflito estabelecido entre atividades econômicas que se sobrepõem quanto ao uso comum dos recursos naturais e, (iii) a necessidade de um novo marco regulatório que assegure a proteção ambiental frente a expansão de atividades econômicas na região.

Muitos técnicos falam da necessidade de intervenções na sub-bacia, visando à restauração de seus mananciais, sob riscos de novos eventos degradadores e conflitos entre usuários. As intervenções seriam aquelas que contemplam técnicas de proteção de nascentes e de áreas de recarga do aqüífero; redução da carga poluidora de fontes pontuais e difusas; reflorestamento e recuperação de mata ciliar; racionalização do uso da água; restauração hidromorfológica; conservação do solo e monitoramento da qualidade da água e sua biota.

Contudo, o conhecimento das técnicas por si só não garante o sucesso das ações de restauração fluvial em si; é importante saber adaptá-las à realidade local e considerar os aspectos socioculturais, político-institucionais, econômicos e ambientais, relacionados ao(s) dano(s) existente(s). Infelizmente, estamos presenciando algumas ações intuitivas, regradas por restrições orçamentárias e por algumas ações midiáticas, limitando-se levar ao conhecimento público de que providências estão sendo tomadas.

Entretanto, antes de qualquer intervenção, é necessário que uma equipe multidisciplinar conduza a elaboração dos Estudos de Avaliação dos Impactos Ambientais causados por este grave desastre ambiental. Diante da complexidade e heterogeneidade dos interesses envolvidos, a avaliação dos impactos ambientais requer uma condução compartilhada no seu processo de gestão, tornando-se necessária a observação de procedimentos de participação pública nos processos de acompanhamento dos projetos, inclusive na seleção das intervenções necessárias. Quanto maior transparência na tomada de decisões e na definição das metas da restauração a ser alcançadas, maiores as chances de se obter sucesso.

Todo Projeto de Restauração Fluvial necessita de marcos regulatórios que possibilitem novas técnicas de gestão e que garantam o perfeito equilíbrio entre proteção ambiental e o desenvolvimento econômico da região. O marco regulatório deve estabelecer um rigoroso cronograma, realístico para ser implantado em etapas e que resulte no alcance das metas previamente definidas. As ações a serem selecionados, devem definir claramente suas metas, as atribuições e responsabilidades dos diversos atores, as fontes de recursos a serem acessadas, as medidas de curto, médio e longo prazo a serem implementadas, o cronograma de ações, os métodos de monitoramento das atividades e os resultados a serem alcançados.

Também compete ao poder público desenvolver ferramentas e mecanismos adequados para o alcance imediato de proteção de todo o sistema fluvial desta sub-bacia hidrográfica, como um bem essencial para a saúde e qualidade de vida da coletividade. Este novo cenário deverá, indiscutivelmente, requalificar os papéis dos agentes públicos e sociais que já estão atuando no processo, o que implica na imputação de deveres, exigíveis inclusive por via judicial.

É necessário, também, que se reconheça a baixa eficácia dos atuais mecanismos e instrumentos de fiscalização e aplicação de penalidades. Quanto ao setor privado, este não poderá reconhecer tamanho esforço, como mera formalidade para superar os problemas concernentes ao passivo ambiental ou, simplesmente, como uma dificuldade a ser superada visando à expansão de suas atividades econômicas.

Estando todos de acordo quanto à necessidade de intervir na sub-bacia e identificando qual o objetivo central desta restauração fluvial, passamos a uma questão aparentemente simples: “para qual condição gostaríamos que os cursos d’água retornassem?”. Isto implica em identificar tanto os níveis atuais de degradação do sistema, como aqueles para os quais os cursos de água teriam a capacidade de se autorrestaurar.

A efetividade do novo marco regulatório deverá incorporar como força indutora do processo de restauração, as três esferas básicas de atuação do Direito Ambiental: a reparatória, a preventiva e a repressiva. A reparação funciona por meio de normas de responsabilidade civil, como mecanismos simultaneamente de tutela e controle da propriedade. Implica prejuízo a terceiros, o que busca reparação do dano ou a recomposição do estado anterior do bem prejudicado ou mesmo uma indenização.

Também no caso da repressão, cuida-se do dano já causado, punindo o (s) responsável (is). A prevenção é a esfera mais importante, afinal os objetivos do direito ambiental são fundamentalmente preventivos, ou seja, anteriores ao dano. Neste caso, atém-se ao risco, pois se considera que a degradação ambiental, em geral, seja irreparável.

O novo marco regulatório deverá também evocar o Princípio da Precaução, que consiste na decisão ideal a ser tomada quando as informações não são insuficientemente conclusivas para indicar os efeitos de determinadas atividades ou condutas humanas sobre o meio ambiente, que se tornam, então, potencialmente perigosas para o equilíbrio ambiental, incluindo a saúde das pessoas e a proteção da biodiversidade.

Esse princípio visa compatibilizar o desenvolvimento econômico – social com a preservação da qualidade ambiental e seus recursos. Ou seja, o Princípio da Precaução se aplica em toda e qualquer ação que possa ser considerada perigosa ao meio ambiente, que possibilite a mitigação dos riscos, requerendo a redução da extensão, da freqüência e da incerteza dos possíveis danos ambientais. Um exemplo pertinente de aplicação do Princípio da Precaução é a restrição total e imediata de utilização de agrotóxicos nas proximidades dos mananciais desta sub-bacia, pois estes elementos podem causar sérias interferências no ecossistema aquático e causar a deterioração de sua qualidade, com efeito cumulativo e sem vestígios aparentes de sua presença.

Na construção do novo marco regulatório, o Direito Ambiental também oferece o princípio da participação e responsabilidade comum. Trata-se de priorizar os interesses difusos e coletivos. Temos visto que a uma significante parcela da população local, tem buscado formas de aproximação dos órgãos de decisão em matéria de meio ambiente. Entretanto, não observamos a reciprocidade esperada.

A idéia é incluir no novo marco regulatório, novas formas de potencializar a cooperação entre a sociedade e o Estado, de forma que os diferentes grupos sociais possam participar da formulação, execução e monitoramento dos projetos de restauração previstos. O princípio da participação, faz com que o cidadão deixe de ser passivo para compartilhar da responsabilidade pela gestão dos interesses coletivos, que a matéria exige.

Lembramos que os Projetos de Restauração Fluviais bem sucedidos, contemplam a participação da sociedade civil como uma condicionante que deva ser inserida em todo processo de decisão, planejamento, implementação e monitoramento. A gestão participativa, inclusive financeira, garante transparência, isenção, respeitabilidade e legitimidade ao processo em permitir a participação de todos, incluindo os técnicos especialistas, gestores públicos, pesquisadores, organizações não governamentais, empresas de saneamento, indústrias, comerciantes, agricultores, ambientalistas, usuários e a população em geral.

Finalmente, o novo marco regulatório deverá prever as responsabilidades pelos danos ambientais. A CRFB/1988, no capítulo que refere ao meio ambiente, estabelece como forma de reparação do dano ambiental, três tipos de responsabilidades: administrativo, civil e penal. Todos independentes e autônomos entre si. Dessa forma uma ação ou omissão pode culminar nos três tipos de ilícitos isoladamente e também receber as sanções combinadas. A responsabilidade civil impõe a obrigação de o sujeito reparar o dano que causou a outrem.

O Estado também tem responsabilidades pelos danos causados – por ação ou omissão – por seus agentes. Assim, a inércia estatal consiste em uma forma de propiciar dano ambiental. Entretanto, essa omissão nem sempre é culposa. Os entes de direito público interno, também podem ser responsabilizados civilmente por danos ambientais causados por sua omissão.

Em outras palavras, a responsabilidade dos entes públicos, não incidem apenas quando diretamente causam alguma degradação ambiental, mas também pela omissão em seu dever constitucional de proteção ao meio ambiente, em que está inserida a fiscalização das atividades econômicas ou empreendimentos de terceiros.

O novo marco regulatório deverá ter uma atenção maior nos processos de licenciamento em toda esta eco-região. A Doutrina Jurídica é muito clara. Quando ocorrer falha no monitoramento ou licenciamento que contribua para o ocorrido, a administração pública responderá solidariamente com o(s) degradador(es), na forma do Art. 37, § 6o. da CRFB/1988. Também a lei 9.433/1997 estabeleceu as obrigações do Poder Público no gerenciamento dos recursos hídricos. Desta forma, constatando-se o descumprimento desta lei, o Estado responderá solidariamente com o(s) autor(es) do dano.

É fundamental que o novo marco regulatório, que irá subsidiar os projetos de restauração fluvial necessários, utilize-se dos princípios da precaução, da prevenção e do controle de danos ambientais e, que as formulações legais também definam metas de melhorias da qualidade da água e que toda a sociedade e, não apenas os gestores e agentes públicos, técnicos e especialistas, sejam incentivados a participar do amplo programa de restauração fluvial que a região tanto necessita.

Temos uma legislação ambiental moderna e rigorosa que auxiliará na escolha das melhores práticas e na possibilidade de adoção de medidas favorecedoras da melhoria física e funcional dos cursos de água da região de Bonito. Assim, com o espírito de contribuição esperamos que o debate a ser promovido pela ESAMS, no dia 06 de maior as 19h no auditório da OABMS, traga luz a este grave problema ambiental que Bonito e Jardim estão travando.

(*) Thomaz Lipparelli é biólogo pela UNESP, diretor técnico do Instituto Serra do Amolar e ex-superintendente de Recursos Hídricos de MS.

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