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A nova geração de política industrial do governo Biden

Glauco Arbix(*) | 10/02/2023 13:20


Além de reconhecer rapidamente o resultado do segundo turno das eleições no Brasil, o presidente Joe Biden classificou como infâmia a agressão contra os três poderes no 8 de janeiro, condenou o ataque à democracia e afirmou que a vontade do povo brasileiro deveria ser respeitada. Um contraste flagrante com 1964, quando Lyndon Johnson ajudou a organizar a deposição de João Goulart e reconheceu o governo dos generais no dia seguinte ao golpe militar.

Pelo menos por enquanto, os Estados Unidos parecem ter optado por se concentrar no que os dois países têm em comum, apesar das diferenças políticas. Biden e Lula tomaram posse após a irrupção de ondas de violência que ameaçaram a transferência pacífica de poder. Os dois presidentes são permanentemente atacados por um significativo contingente da população que não demonstra apreço pelo estado de direito. A defesa da democracia e a disposição de enfrentar as mudanças climáticas encontram respaldo em agendas sociais ambiciosas. A reconhecida obstinação de Lula é dar a cada brasileiro uma vida digna, sem fome e com acesso a emprego, saúde e educação. E Biden procura se firmar como um dos presidentes americanos mais progressistas da história.

As mudanças na política americana se expressam também no terreno da economia e na atuação do estado, o que tem provocado fortes reações internas e externas aos Estados Unidos, com implicações para o Brasil. Por isso é oportuno conhecer seus mecanismos básicos.

Após décadas de investimento e intensificação do comércio e da cooperação com a China, os EUA deram passos decisivos para interromper o declínio da sua economia e recuperação do emprego. Na contramão da ortodoxia econômica mais tradicional e sem mistificar as virtudes dos mercados, Biden executa desde meados de 2022 uma nova geração de política industrial que, espera-se, deverá ajudar na recuperação da capacidade industrial e recompor a competitividade da economia norte americana em áreas tecnológicas críticas.

O presidente Joe Biden assinou um conjunto de leis que podem fazer história dado o impacto esperado na indústria de energia limpa, chips de computadores, infraestrutura, suporte para as tecnologias digitais, inteligência artificial e no universo da ciência, saúde e educação. Os EUA deixaram claro que não podem mais manter sua competitividade, um mercado de trabalho dinâmico e, principalmente, sua segurança, se não recuperar capacidade industrial e intensificar os processos mais radicais de inovação.

Para isso, três programas de peso foram lançados após a aprovação pelo Congresso americano da Lei de Investimentos e Empregos em Infraestrutura (Infraestrutura), da Lei sobre Chips e Ciência (Chips) e da Lei de Redução da Inflação (IRA)2. Longe de se apresentarem como medidas tradicionais de investimento para estimular a demanda, as três leis se articulam para atuar fortemente também na dimensão da oferta, para reconstruir e remodelar a capacidade da economia e voltar a ocupar a vanguarda da inovação mundial, principalmente em setores-chave, como semicondutores e energia renovável.

A IRA prevê investimentos de US$ 400 bilhões em energia verde, energias limpas e veículos elétricos. A Chips colocou à disposição mais de US$ 50 bilhões apenas para atrair os principais fabricantes de semicondutores a construir suas fábricas em território americano e definiu um orçamento de US$ 170 bilhões para financiar a pesquisa sobre tecnologias do futuro. Essas duas leis foram articuladas com os programas de infraestrutura, a serem sustentados por recursos da ordem de US$ 1,2 trilhão. Trata-se, efetivamente, de um novo modo de recriar a musculatura e recuperar o dinamismo da economia norte-americana.

A tentativa de Biden é de remodelar, recriar e não se amoldar à lógica dos mercados.

Essa nova geração de políticas públicas pretende sacudir a economia americana e a mundial. A decadência da economia – que, segundo o governo, esteve na raiz da vitória de Donald Trump em 2016 – precisa ser interrompida e o avanço global da China precisa ser contido, principalmente em seu braço econômico, tecnológico e militar. Para o governo americano, o posicionamento atual da China só foi alcançado graças à intensa absorção de conhecimento, tecnologia e ciência dos EUA e da Europa, seja via investimento direto dos países democráticos, a realocação de plantas industriais, a cooperação científica e a qualificação em massa de estudantes chineses propiciada pelas principais universidades do mundo. Os sinais são claros que essa era de convivência mais calma está terminando. Restrições ao comércio, barreiras de defesa tecnológica e um forte movimento de reshoring se desenvolve a pleno vapor, com resultados profundos no reordenamento das cadeias globais de valor e impactos ainda imprevisíveis no atual funcionamento da economia mundial.

A ascensão da China (baseada na aberta intervenção estatal), as vulnerabilidades da indústria americana (evidenciadas pela pandemia do sars-cov-2), a gravidade dos impactos das mudanças climáticas e a crise das democracias despontam como os principais emuladores da nova política.

Os três programas formulados pelo governo foram projetados para potencializar o investimento público e para atrair e acelerar o investimento privado, não para substituí-lo. A leitura das políticas revela como primeira constatação que grande parte do investimento público foi consolidada na forma de créditos fiscais para empresas. Os programas procuram também impulsionar mudanças no sistema legal-regulatório e facilitar a atuação dos governos estaduais que, por conta das características do federalismo norte-americano, possuem grande autonomia na fixação de suas regras.

Apesar de sua implementação recente, já é possível notar alterações nos procedimentos para alocação e licenciamento de projetos de energia verde, nas perspectivas de sustentabilidade e desigualdades sociais. Ou seja, as novas leis federais procuram emular o desenvolvimento econômico das regiões de modo a potencializar as prioridades locais e a capacitação das comunidades. Nesse sentido, a nova política industrial vai muito além das fronteiras das empresas e se volta para fortalecer a qualificação profissional, o ensino secundário, técnico e commmunity-colleges, assim como a integração de serviços essenciais para a população, como a saúde e educação.

Os princípios básicos que regem a aplicação dos programas se assentam sobre a cooperação público-privada e na articulação entre o governo federal, estados, municípios e comunidades, que se movimentam rapidamente para apresentar novos projetos em cooperação com empresas e recursos locais para pleitear junto aos diferentes ministérios e agências a ampliação do investimento. Mais de U$ 300 bilhões do governo federal somente serão liberados a partir de articulações, propostas e contrapartidas regionais ou locais, de modo a amplificar a dotação original definida pelo Congresso. Apenas para ilustrar, enquanto o Tesouro americano responde pela coordenação dos créditos fiscais, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) e o Fundo para Redução do efeito estufa lançaram edital para liberação de cerca de US$ 7 bilhões para estados e municípios e US$ 20 bilhões para organizações sem fins lucrativos. No mesmo sentido, fundos de investimento e bancos dedicados à economia verde procuram otimizar seus recursos com o aumento de sua ambição tecnológica e de suas contrapartidas.

Isso significa que estados, municípios, empresas e organizações non-profit competem pelos recursos federais com base na qualidade, viabilidade e expectativa de resultados oferecidos por seus projetos. Foi a partir dessa lógica que o estado do Arizona e a cidade de Phoenix atraíram mais de US$ 40 bilhões para internalizar nos EUA a nova fábrica de semicondutores da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company Ltda (TSMC), líder incontestável no mercado global de semicondutores.

Ponto e inflexão

Esses procedimentos estão em contraste com as práticas tradicionais das políticas industriais norte-americanas, mas também com os instrumentos utilizados pela União Europeia. Na realidade, a nova política industrial de Biden, ao realçar a competição, a regionalização e a orientação por resultados, pode servir de inspiração para o Brasil, em que o histórico das políticas de estímulo industrial deixa claro a preferência pelo lado da oferta e por transferências sem o estímulo da competição, integração e mobilização dos agentes econômicos.

Toda a política industrial está marcada pelo incentivo a programas locais de promoção do crescimento inclusivo, a geração de emprego e renda.

O foco nas áreas econômicas mais sensíveis, como as tecnologias digitais, orienta o investimento para a disseminação da banda larga e backbones de alto desempenho capazes de sustentar a indústria avançada e o desenvolvimento regional, para elevar a qualidade de vida de milhões de desconectados ou analfabetos digitais, como a pandemia da covid-19 estampou aos olhos do mundo.

Os programas aprovados preveem o maior investimento público da história dos sistemas de comunicação e informação dos EUA. Integrado aos esforços de melhoria da educação, os americanos querem qualificar e requalificar milhões de profissionais, de modo a atrair e reter empresas nos setores essenciais da economia. Essa é a preocupação central de estados e municípios, que procuram elevar a capacitação de seus profissionais para lidar com as novas características do trabalho e suprir as carências de um mercado de trabalho sedento de gente qualificada nas atividades digitais, com destaque para a inteligência artificial, no suporte de hardware (como nos chips) e na imensa gama de segmentos ligados ao clima e à sustentabilidade.

Os três programas centrais da política industrial do governo Biden estão no coração de seu mandato.

Como se sabe, as políticas industriais são quase tão antigas quanto o nascimento da indústria. Nos EUA, no final do século 18, Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro americano, apresentou ao Congresso o Report on the Subject of Manufactures, em que propôs uma série de medidas de proteção para que a então nascente indústria americana pudesse viabilizar a independência efetiva de seu país. Subsídios, tarifas, restrições ao comércio constavam do rol de propostas que ficou conhecido como uma das primeiras expressões de política industrial na história mundial. No debate de seu relatório, para criticar a ideia dominante de que apenas os mercados teriam condições de superar os desafios colocados pela concorrência desigual, em especial oriundos da Inglaterra, Hamilton declarou que os argumentos de Adam Smith em defesa do livre-comércio, ainda que “geometricamente verdadeiros”, eram “praticamente falsos”. Foi por esse caminho, intensamente recheado de barreiras tarifárias e proteção, que os Estados Unidos, a França e a Alemanha conseguiram se industrializar.

Sabe-se que as políticas industriais de hoje são de diferente linhagem. E quanto mais as economias se tornam digitalizadas e preocupadas com a sustentabilidade, maior a necessidade de políticas complementares e maiores as dificuldades para se definir os estímulos adequados, sem desperdiçar recursos públicos.

Com pouco mais de seis meses de sua execução, os riscos que a nova política industrial oferece começam a despontar.

Emmanuel Macron, presidente da França, declarou que a política industrial tem o poder de fragmentar ainda mais o já turbulento Ocidente. Os republicanos apresentam uma procissão de argumentos para desacreditar e prenunciar o fracasso dos programas, dadas as dificuldades de sua coordenação e inexperiência dos órgãos públicos envolvidos.

Como barreira de contenção das críticas, a cautela do governo Biden com a execução se fez presente na definição da governança da política, que inclui o Tesouro nacional, os Ministérios de Energia, Transportes, Comércio, Trabalho, Saúde e a Agência de Proteção Ambiental. Esses órgãos estão aninhados diretamente na presidência da república, além de serem apoiados por camadas de agências e outras instituições voltadas diretamente para sua execução.

No âmbito da iniciativa privada, a resposta tem sido robusta. A Intel anunciou novas fábricas de chips em Ohio, orçadas em US 20 bilhões; a Micron Technology iniciou a construção de uma enorme planta de semicondutores no estado de Nova York. A TSMC seguiu pela mesma rota no Arizona, assim como a Samsung, a Siemens, a Volkswagen com seu foco em energia limpa e baterias de veículos elétricos. Centenas de empresas se associam às mais diferentes instituições e participam do esforço de reordenamento da economia americana.

Os pontos de apoio para uma economia verde, mais sofisticada digitalmente e mais decente na geração de emprego e renda começam a se tornar realidade, sem que Biden escolha campeões ou recorra ao protecionismo tradicional.

Dificuldades e oportunidades para o Brasil

O prêmio Nobel Joseph Stiglitz insiste reiteradamente que as políticas industriais contemporâneas não podem ser centradas apenas no desenvolvimento e absorção tecnológica, mas devem se orientar para a construção de indústrias, empresas e sociedades capazes de aprender. Exatamente por isso, as políticas que facilitam a difusão de conhecimento para os países em desenvolvimento e o trânsito de práticas mais produtivas e avançadas entre setores da economia são as mais promissoras.

Seria ingenuidade negar que a política industrial do governo Biden traz dimensões que dificultam a recuperação da economia brasileira, principalmente sua manufatura que viveu intenso processo de desindustrialização nos últimos anos. Além da desproporção entre as economias, a capacidade de atração de investimento dos EUA é avassaladora comparada a do Brasil. E a guerra tecnológica que os americanos travam com os chineses e as perspectivas do reshoring, podem reverberar negativamente em solo brasileiro.

Mas, diferentemente da China, o Brasil não é pivô de nenhuma disputa de peso com os EUA. Os pontos de contato atuais em defesa da democracia podem ajudar o presidente Lula no diálogo com Biden. A transição energética marcou a participação do governo brasileiro na COP27, no Egito. A reafirmação da responsabilidade ambiental do Brasil, seu compromisso de conter o desmatamento da Amazônia, e a disposição de sediar a COP30 realçou o Brasil na linha de frente da questão ambiental. Mais ainda, as empresas brasileiras e instituições de pesquisa, públicas e privadas, se preparam para apressar o trânsito das energias solar e eólica para hidrogênio e a produção de combustível sustentável para a aviação. Os EUA têm a oferecer a experiência regulatória e sistemas de financiamento inovadores para a implantação de novas tecnologias. E o Brasil conta com profissionais qualificados, centros de pesquisa de excelência e sua imensa biodiversidade, como se tornou transparente nos trabalhos do Diálogo da Indústria de Energia Limpa Brasil-EUA, em 2022, que registrou densa participação do setor privado.

O novo governo brasileiro oferece oportunidades para (re)energizar as relações e avançar com metas ambiciosas para todas as áreas de energia limpa. Em 2024, o Brasil assumirá a liderança do G20 e os fóruns internacionais para tratar de questões do planeta tenderão a ganhar em qualidade, principalmente se o Brasil confirmar seu posicionamento na vanguarda ambiental e liderança na luta contra a pobreza e a fome. Na dimensão econômica, as iniciativas voltadas para a sustentabilidade e a digitalização se projetam com as duas grandes prioridades para o desenvolvimento brasileiro e dos emergentes. São duas janelas sedutoras para os investidores americanos, que viram suas opções diminuírem após a crise com a China e a Rússia. O fluxo de capitais para o Brasil pode se tornar altamente positivo e acompanhar a mudança de humor dos investidores internacionais com a derrota eleitoral de Bolsonaro.

Na verdade, a elevação do preço das commodities no mercado mundial, as perspectivas de investimento e o enfrentamento das mudanças do clima e da democracia, permitem um sopro de otimismo para todos os brasileiros. Um otimismo moderado, pois todos conhecemos um pouco do Brasil e do mundo da política.

Brasil e EUA podem trabalhar juntos, mesmo com os vestígios protecionistas que a nova política industrial de Biden contém. Se o governo brasileiro conseguir aprofundar esse diálogo, as oportunidades para a diminuição da pobreza e redução das desigualdades, no Brasil e nos EUA, serão reais

Tirar os novos planos do papel nos EUA, formular novas políticas públicas integradas no Brasil, é desafio gigantesco ao Sul e ao Norte do planeta.

(*)  Glauco Arbix, professor titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, ex-presidente do IPEA e da FINEP, pesquisador do Center for Artificial Intelligence – USP-Fapesp-IBM (C4AI)


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