As inovações nem sempre são boas
Algumas inovações podem trazer mais problemas do que resolvem. Comento duas propostas de consequências, com grande probabilidade, nocivas.
A primeira é a imposição do uso do idioma inglês em reuniões e seminários, mesmo quando toda a plateia é de brasileiros. Seria mais um passo à internacionalização da nossa universidade, havendo desde já quem proponha ministrar em inglês também cursos. Quem sabe, daqui a pouco, até disciplinas de graduação. Se é verdade que, como dizem, “bad English is the international language of Science”, e o seu domínio é imperativo, também é verdade que “ispiquingui inglish, quando a gente nem o português sabemos direito”, e representa uma inversão de prioridades na formação de nossos alunos, pois se constata que cada vez mais os orientadores de pós-graduação têm que tomar a si a escrita de teses e artigos, diante da dificuldade crescente de alunos para redigir um texto científico. Saliento que me refiro à área de ciências empíricas, donde é minha experiência. A falta de vocabulário e da capacidade de elaborar textos logicamente estruturados prejudica trabalhos, sob o aspecto do conteúdo científico, às vezes, muito bons.
A internacionalização necessariamente nos impõe a língua inglesa como a única? Certamente não! Basta pensarmos nas duas principais motivações que trazem alunos, pesquisadores e, eventualmente, outros profissionais ao nosso país. São o interesse pela nossa cultura ou a busca de novas oportunidades para o estudo e o trabalho. Em ambos os casos é do maior interesse do visitante, ou imigrante, o domínio mais rápido e amplo do nosso idioma (sem contar que nós falamos uma das línguas mais difundidas no mundo). Quem quiser se aprimorar no inglês irá a um país onde essa língua é falada no cotidiano. Evidentemente, não me refiro a cursos por especialistas ou apresentações em encontros científicos internacionais, em que o “bad” ou “good English” deve prevalecer.
Outra dessas inovações duvidosas, que desponta, é a exigência de que, antes da defesa de tese, o pós-graduando já tenha um paper submetido para publicação numa revista que goze de prestígio junto à comunidade científica. Daqui a pouco talvez cheguemos à imposição de que o artigo já seja aceito ou, quem sabe, consiga algumas citações, uma, duas, dez, vinte etc., antes que a tese possa ser defendida. Perante os percalços da publicação de um paper o bom senso imediatamente pergunta: e como justificar junto às agências financiadoras que a tese está pronta, mas não é permitida a defesa até… sabe-lá-deus-quando? Como prestar contas?
Há mais, porém, a considerar. Precisamos entender a diferença entre uma instituição de ensino e formação profissional e uma de pesquisa. Ocorre, atualmente, uma confusão entre elas. Institutos de pesquisa passam a introduzir cursos de pós-graduação, possivelmente até em prejuízo de suas missões originais, e, por outro lado, há quem tenda a restringir a universidade a instituto de pesquisa.
Dentre as missões da universidade, contudo, devemos destacar a educacional e formadora de profissionais. Essa missão é desempenhada num caos criativo. E dela são coadjuvantes o ensino e aprendizado da pesquisa científica. Desde a iniciação científica até o doutorado. Ou seja, a formação de um cientista, capaz de atuar independentemente, segue as etapas, às vezes, pulando uma ou outra: aprendizado das matérias envolvidas, iniciação científica, cursar disciplinas de pós-graduação, treinamento no método científico e no uso adequado de equipamentos de pesquisa, pesquisa bibliográfica, definição e execução de um tema, participação em congressos, elaboração de uma tese, defesa de tese, eventual publicação dos resultados da tese em revista científica.
Com a exceção da última etapa, todas dependem, praticamente, do esforço do pós-graduando e de seu orientador. Consequentemente, o objetivo final da pós-graduação é a tese – com evidente contribuição para o avanço do conhecimento prático ou descompromissado – e não o paper. Inverter essa ordem implica, entre outras coisas, desconsiderar a eventual contribuição da banca examinadora competente, em termos de ideias e correções, e desvalorizar o conhecimento adquirido com o trabalho de tese.
A pós-graduação é uma etapa de formação, portanto, todas as etapas dela requerem a presença do orientador. Trabalhar junto é uma necessidade. Fato que, pelo tempo exigido, limita severamente o número de alunos que um orientador pode aceitar simultaneamente. A pressão produtivista – que eu prefiro chamar de produtivite para ressaltar seu caráter patológico – sobrecarrega o orientador até com a frequente necessidade de ele tomar a si a realização de experimentos mais complexos e participar intensamente da redação da tese, visto que o excesso de exigências impostas ao aluno atrasa o amadurecimento científico e a independência intelectual. O orientador é coautor de pesquisa científica, não capataz, de produção de papers.
Outro ponto a considerar se refere ao futuro profissional do doutor recém-titulado. Com as vagas acadêmicas, no País, cada vez mais escassas, não há como escapulir da, por alguns temida e rejeitada, “lógica do mercado”. Afinal, não é objetivo da universidade formar futuros desempregados. E nessa “lógica” o “paper” desempenha “papel”, com frequência, nulo. Por tudo isso, o ato de condicionar a defesa de tese à publicação prévia de um artigo deve ser, com ênfase, rejeitado.
As inovações nem sempre são benéficas. As que comentei podem ter o efeito oposto daquele que seus proponentes pretendiam, e afastar talentos em vez de atraí-los.
(*) Tibor Rabóczkay é professor titular aposentado do IQ-USP