Arqueogenética: um olhar para o passado para garantir o futuro
Extrair DNA de remanescentes fósseis é uma daquelas ideias obviamente revolucionárias que tiveram de aguardar décadas para se tornar realidade. O efeito da passagem do tempo nas moléculas de DNA é brutal, reduzindo-as a pequenos fragmentos de fita simples, muitas vezes com poucas dúzias de pares de base, que ficam imersas num oceano de DNA contaminante. Svante Pääbo, um geneticista sueco que na infância sonhava em ser egiptólogo, recebeu este mês o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina, justamente por ter desenvolvido técnicas que permitiram sequenciar aquilo que se convencionou chamar de “DNA antigo”, ou aDNA. Foi o nascimento de uma nova área do conhecimento, a Arqueogenética, e com ela uma nova era para os estudos sobre o passado humano.
O Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA), fundado e dirigido por Svante Pääbo, entrou para a história da ciência em 2010. Primeiro, publicaram o rascunho do genoma neandertal, confirmando os eventos de mistura com os grupos humanos que saíram da África há 60 mil anos atrás. Em seguida, descreveram uma nova espécie de ancestral humano extinto, os denisovanos, exclusivamente com base em dados moleculares. Nos anos que se seguiram, as análises de DNA antigo se expandiram para os mais diversos contextos geográficos e cronológicos. Após mais de um século de debate, foi confirmado que a revolução neolítica na Europa foi em grande medida resultado da migração efetiva de pessoas e não apenas da transmissão de ideias pelo estreito de Bósforo. A origem do tronco linguístico Indo-Europeu, debatido desde sua identificação ainda no século 18, mostrou estar nas populações nômades da estepe pôntico-cáspia, que a partir da idade do Bronze domesticam cavalos e se expandem violentamente.
No Brasil, em 2018, são publicados os primeiros trabalhos de arqueogenética, que mostraram que a hipótese de que os grupos humanos que aqui habitavam há dez mil anos representariam uma população radicalmente distinta daquela que viria a ser ancestral de todos os grupos nativos americanos conhecidos desde a chegada dos europeus ao Novo Mundo estava errada. Atualmente, no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, estamos instalando o primeiro laboratório de DNA antigo humano do Brasil, em parceria com o MPI-EVA e amplo financiamento da Fapesp. Com essa iniciativa devemos aumentar o ritmo das análises e assegurar um maior protagonismo da comunidade científica brasileira nesta nova área do conhecimento. Nos próximos anos espera-se que análises feitas integralmente dentro da USP sejam capazes de avançar nosso conhecimento sobre temas clássicos da Antiguidade Ameríndia: dinâmicas populacionais entre sociedades sambaquieiras, o surgimento e expansão da cerâmica e agricultura na Amazônia, modelos de expansão dos grupos Tupi, dentre tantos outros.
As mesmas técnicas de laboratório e métodos bioinformáticos usados para reconstruir o genoma dos hominídeos primitivos também são usadas para estudar a evolução de diversas linhagens de organismos extintos. Sequências de aDNA de espécies extintas há muito tempo, como espécimes do mamute-lanoso de 45 mil anos, espécimes do urso-das-cavernas de 50 mil anos e o osso de um cavalo antigo preservado no permafrost de 560 mil a 780 mil anos atrás, entre outros, expandiram nosso conhecimento da variação genética além de um retrato instantâneo da diversidade que existe hoje para incluir a diversidade genética de linhagens extintas, permitindo a obtenção de informações temporais, rastreando mudanças na genética ancestral de populações de animais, plantas e até micróbios à medida que se expandem, colapsam e se adaptam a novas condições ambientais locais. Essa abordagem pode até fornecer insights sobre a estrutura e a variação temporal de comunidades inteiras. Por exemplo, analisando amostras de monturos de rato, pesquisadores conseguiram construir caracterizações altamente detalhadas de comunidades de plantas, animais, bactérias e fungos de 32 mil anos atrás.
Esta abordagem também permite a análise genética de espécies raras e recentemente extintas presentes exclusivamente em museus de história natural, o que pode ter implicações importantes para a compreensão e conservação da biodiversidade existente. Nas últimas décadas, declínios globais nas populações de anfíbios resultaram no desaparecimento e provável extinção de centenas de espécies em todo o mundo. A maioria dessas espécies desapareceu antes que se tornasse prática comum preservar tecidos para análise de DNA. No entanto, ao aplicar técnicas de aDNA a esses espécimes históricos de museu (daí o termo DNA histórico, ou hDNA), no Laboratório de hDNA do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da USP, com financiamento da Fapesp, estamos obtendo sequências genéticas de espécies de anfíbios que não são vistas na natureza há décadas. Por exemplo, análises de hDNA de espécimes da rã-foguete da Mata Atlântica (Allobates olfersioides), da Coleção de Herpetologia do Museu de Zoologia (MZ) da USP coletados nas décadas de 1960 e 1980 de populações atualmente extintas, juntamente com sequências genéticas de amostras recém-coletadas de populações existentes, revelaram que o que se acreditava ser uma única espécie distribuída amplamente na Mata Atlântica é composta de pelo menos dez espécies diferentes, cada uma restringida a uma pequena área geográfica e, portanto, com risco muito maior de extinção. Achados como estes ilustram a importância crítica dos milhões de espécimes alojados em coleções de biodiversidade como o MZ.
Embora o prêmio Nobel tenha sido concedido a Svante Pääbo em reconhecimento à importância dessa abordagem na elucidação da história genética, suas possíveis aplicações são ainda mais abrangentes. Por exemplo, na última década, ganhou força o conceito da “desextinção”, por meio da qual as tecnologias de aDNA e da edição do genoma seriam aplicadas para ressuscitar espécies extintas. Embora os cientistas ainda estejam um pouco distantes de tornar isso realidade, o fato de a possibilidade estar sendo considerada fora do âmbito da ficção científica revela o quanto o campo avançou em tão pouco tempo, e a importância que pode ter no futuro.
(*) André Menezes Strauss é professor do Museu e Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, e Taran Grant, professor do Instituto de Biociências (IB) da USP.