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As áreas verdes públicas precisam se manter verdes e públicas

Por Demetrio Luis Guadagnin (*) | 29/01/2024 08:30

As áreas verdes públicas são reconhecidas nas sociedades contemporâneas e democráticas como opções valiosas para o uso da terra, planejadas para prover uma série de benefícios por meio da sua conservação enquanto verdes e públicas. Proteger e, ao mesmo tempo, desfrutar da natureza e do patrimônio é, entretanto, desafiador.

As áreas verdes estão sob pressão. Degradação, abandono, concessões, invasões, grilagem e mudanças jurídicas para favorecer negócios privados são notícias recorrentes. A solução passa por reconhecer a relação fundamental entre natureza e bem-estar comum. Os dois maiores desafios que atualmente enfrentam as áreas verdes públicas são mantê-las verdes e mantê-las públicas.

Áreas verdes são fundamentais. Precisamos delas para garantir o que sinteticamente podemos denominar “sustentabilidade”. No centro desse conceito está o bem-estar comum, um desafio socioambiental. Sob esse conceito guarda-chuva estão os serviços ecossistêmicos que permitem a realização de benefícios insubstituíveis.

Entre os serviços ecossistêmicos mais importantes estão a proteção contra eventos climáticos extremos, o equilíbrio do microclima e do macroclima, a proteção da herança histórica e cultural de uma comunidade ou povo, a estimulação sensorial adequada ao equilíbrio psicológico e psicossocial, a oferta de oportunidades para o convívio e a cidadania, a manutenção da qualidade do ar e da água e o provisionamento de recursos biológicos essenciais para a vida moderna ou para a reprodução cultural de comunidades. Poderíamos citar muitos mais.

É importante lembrar que a realização dos benefícios não é uma consequência exclusiva da preservação dos serviços ecossistêmicos. São necessários investimentos e intervenções que transformem os serviços das áreas verdes em benefícios humanos acessíveis e tangíveis. Além disso, é necessário que esses benefícios sejam comuns, distribuídos entre todos. Cabe lembrar também que os serviços são proporcionados pela biodiversidade de um ecossistema, e não pelos eventuais proprietários da área onde a biodiversidade e o ecossistema se situam.

Precisamos de muitas e diversas áreas verdes. Aqui se incluem as pequenas, grandes, públicas, privadas, urbanas e rurais. No Brasil, a legislação reconhece cinco tipos de áreas verdes como territórios especialmente protegidos, também chamados de áreas protegidas: unidades de conservação, áreas de preservação permanente, reservas legais, terras indígenas e quilombolas, e áreas de reconhecimento internacional.

Cada área verde, independentemente de ser ou não legalmente protegida em algum grau, será capaz de proporcionar alguns dos muitos benefícios ao bem-estar comum, conforme seus atributos. Pequenos recuos e pátios vegetados, terraços verdes, praças e canteiros, por exemplo, podem ser importantes para o microclima, para captar e depurar água, ou como trampolins para conectar pessoas e biodiversidade. Grandes parques podem ser importantes para proteger espécies ameaçadas de extinção, promover turismo, sequestrar carbono, regular o ciclo hidrológico, reconectar a mente com a natureza, etc.

Precisamos de áreas verdes públicas e privadas. As propriedades privadas têm uma função social e dispomos de diversos mecanismos legais para garanti-las, frequentemente mal compreendidos. As áreas verdes privadas são essenciais simplesmente porque poucas áreas públicas ainda restam, especialmente próximo de onde a maioria das pessoas vive.

As áreas verdes públicas são essenciais, porque são as únicas em que o interesse comum, o bem-estar comum, está acima de interesses particulares. Assim, elas são capazes de promover mais benefícios. Elas também tendem a ser mais estáveis no longo prazo frente a pressões econômicas, que estimulam sua perda ou degradação.

As áreas verdes e o bem-estar comum estão sob enorme e crescente pressão. Existem armadilhas no pensamento moderno que se traduzem em atitudes e comportamentos que ameaçam as áreas verdes. A primeira armadilha é a tragédia dos bens comuns – a dificuldade em reconhecer os benefícios da manutenção das áreas verdes, muitos deles difusos, indiretos e de longo prazo.

Isso se opõe à facilidade de reconhecimento dos benefícios privados da conversão das áreas verdes em outros usos, ou a sua privatização, porque estes são diretos e tangíveis imediatamente, embora por poucos.

A segunda armadilha é a neoliberalização da proteção ambiental – a noção de que para salvar a natureza é necessário incorporá-la ao mercado, transformá-la em uma commodity e atrair investimentos, amparado na noção de que o único valor tangível é o valor de troca.

A própria realização dos benefícios guarda em si uma contradição, exacerbada no discurso neoliberal – é necessário usar e capitalizar para conservar, mas usar e capitalizar, em certa medida, comprometem a conservação, e vice-versa. Enquanto a primeira armadilha estimula a perda das áreas verdes, a segunda estimula sua degradação e a exclusão socioambiental.

A perda das áreas verdes se concretiza de várias formas. No caso das unidades de conservação, são crescentes as pressões para reduzir o tamanho, reduzir o grau de proteção, aumentar a exploração de recursos e a conversão da cobertura vegetal, extinguir e isolar de outras áreas verdes.

Quanto aos outros tipos de áreas protegidas, são crescentes as pressões para mudar planos diretores e favorecer a especulação imobiliária, alterar índices construtivos e zoneamento, desobrigar o cumprimento de regras e fragilizar o planejamento e a fiscalização.

A privatização e a degradação das áreas verdes acontece de várias formas, sendo a mais comum delas a concessão. Gestores privados podem ser mais ágeis que o setor público na prestação de alguns serviços e na captação de recursos externos para investimentos e ambos são necessários para realizar os benefícios das áreas verdes.

Entretanto, embora a concessão das áreas verdes públicas para gestores privados possa ser positiva para o bem-estar comum, frequentemente é uma ameaça. O discurso neoliberal da proteção ignora que a sociedade é desigual.

Assimetrias de poder entre grupos sociais com demandas e interesses diferentes, inclusive sobre a valorização econômica de diferentes serviços ecossistêmicos e benefícios das áreas verdes, podem resultar em privilégios, exclusão de acesso e degradação.

Tem sido desafiador defender as áreas verdes públicas. A solução neoliberal é a exclusão socioambiental, o sacrifício do bem-estar comum – manter apenas as áreas verdes capazes de gerar benefícios privados e tangíveis no curto prazo, aqueles pelos quais existe alguém disposto a pagar.

O caminho para encontrar soluções verdadeiras é recordar que no centro da noção de sustentabilidade está o bem-estar comum. O fundamental é manter as áreas verdes públicas assim mesmo: verdes e públicas.

(*) Demetrio Luis Guadagnin é professor do Departamento de Ecologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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