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Bem-vindo ao deserto do real

Daniel Afonso da Silva (*) | 06/08/2023 08:30

Os eventos franceses recentes reforçam a convicção de que a França, a Europa, o Ocidente e afins vivem, amargamente, um duro, inquestionável e irrevogável momento de regressão civilizatória. Já tem tempos que os fundamentos de cultura e espiritualidade que matizaram o mundo ocidental estão, como sabido, em acelerada decomposição. Europeus e norte-americanos perderam a fé e a sua ética católica ou protestante e estão construindo, desde ao menos as guerras totais do século 20, uma sociedade pós-cristã.

Tudo isso vem indicando que o esteio moral que galvanizou a longa experiência civilizacional do Ocidente deixou de ser majoritário no mercado das ideias. O identitarismo – e todos os seus relativismos – parece ter vencido mais e melhores batalhas nos últimos 50 anos. A “religião woke” – por falar e gritar mais alto – parece ter soterrado as demais narrativas; mesmo as mais consolidadas racional e moralmente. Como decorrência de tudo isso, firmou-se um estranho paroxismo que só oferta lugar de destaque aos admiradores irrestritos do jovem Nahel, morto em Paris, no dia 27 de junho, após uma interpelação policial rotineira.

O assassinato de Nahel tem causado manifestações que atravessam as cercanias de Paris e seguem sensibilizando o país inteiro. Milhares – talvez, mais de uma dezena de milhar – de automóveis foram incinerados em toda a França. Desde 2005 que não se via nada similar. Centenas de veículos do transporte em comum foram depredados. Dezenas de estabelecimentos públicos foram vandalizados. Milhares de estabelecimentos comerciais foram saqueados. Centenas de pessoas comuns foram agredidas. Dezenas delas precisaram ser hospitalizadas.

Milhares de oficiais da lei e da ordem – majoritariamente policiais – foram hostilizados. Centenas de autoridades políticas e militares seguiram sendo intimidadas. Dezenas de parlamentares foram interpelados por seus eleitores. E um prefeito, de uma cidade do interior, teve a sua residência particular violada e a sua família posta em constrangimento.

Segmentos de direita, extrema ou moderada, puseram a culpa na imigração. Nahel era um rapaz de 17 anos, fruto de família imigrante e disfuncional, vivendo na periferia de Paris, em “territórios perdidos da República”, indiferente à cultura francesa e contrário aos ditames éticos e morais do Ocidente.

Segmentos de esquerda, normal ou desvairada, puseram a culpa no racismo estrutural, no machismo ambiente, na virilidade policial, na falta de empatia com a diferença e com o sofrimento alheio, na ausência de mais mulheres em postos de comando e na incapacidade do Estado francês em “acolher toda a miséria do mundo” – para lembrar uma máxima do inesquecível Michel Rocard, representante de uma digníssima esquerda francesa normal.

Não é a primeira vez que incidente similar acontece na França nos últimos 40 ou 50 anos. Mas talvez seja a primeira vez, no entanto, que a noção de anomia perdeu, integralmente, a sua capacidade de persuasão. O que acabou por dar vazão à reabilitação do termo “descivilização”.

O presidente Emmanuel Macron parece ter sido o primeiro presidente de um país ocidental a lançar mão desse termo, em reunião do Conselho de Ministros, antes mesmo do fatídico dia 27 de junho, para explicar a situação francesa, europeia e ocidental. Na ocasião, o presidente da França reconhecia que o mal-estar francês generalizado provém e induz causas e consequências, como sempre, extremamente complexas. Mas, por alguma razão, desde algum tempo, essas causas e consequências ganharam outro teor, dispersa dimensão e novo diapasão.

A insatisfação generalizada, notava ele, provavelmente seja uma marca francesa desde o processo revolucionário do século 18. Mas, em algum momento deste século 19, ela ultrapassou níveis razoáveis de mero desespero e desesperança. O retorno da violência plural começou a saturar a paciência de todos. Inclusive dos mais estoicos. A higidez e a racionalidade de instituições historicamente consequentes deram lugar a relativizações.

A deontologia de funções e comportamentos públicos e privados perderam a sua própria natureza diante da desqualificação da autoridade de autoridades. O sentido da identidade francesa que informa “o que é ser francês”, pela primeira vez, perdeu, decisivamente, a sua essência ante o identitarismo desbragado. E, com isso, tudo que outrora fora sólido e tangível entre ocidentais começou a, verdadeiramente, desmanchar no ar e regredir no chão de terra do cotidiano concreto, notadamente, dos franceses.

Deixou-se, portanto, seguia o presidente, de se estar diante de somente um “declínio do Ocidente”. Um declínio evidente e já consolidado no tempo e no espaço desde, ao menos, o século 19. Iniciou-se, em algum instante do século 21, um novo tempo do mundo traduzido num momento de “descivilização”.

A noção precisa do termo “descivilização” foi elaborada e trabalhada pelo sociólogo Norbert Elias em sua obra máxima, de 1939, O processo civilizador. O núcleo de seu argumento consistia em constatar que, ao longo dos séculos, especialmente na Europa e notadamente na França, as pessoas foram construindo mecanismos morais e racionais de controle da violência a partir do autocontrole de suas pulsões.

Como resultado dessa gramática progressiva de posturas racionais, civilidade, urbanidade, cordialidade, cortesia, gentileza, cortesania, sutileza, humor, empatia e afins viraram regras de convívio no Ocidente. Mas essas posturas, argumentava Elias, não configuram ganho civilizatório eternamente garantido. Processos civilizadores podem, seguia ele, estacionar e mesmo regredir. E, ao regredir, tendem a gerar “descivilização”.

O período entreguerras foi um grande momento de regressão. Pela primeira vez na história contemporânea do Ocidente a polidez e as boas maneiras se fizeram ausentes da maior parte das relações. A violência plural do conflito de 1914-1918 brutalizou completamente todas as relações humanas, alterou espaços de experiência, modificou horizontes de expectativas e conduziu o império da civilidade ao império da suspeição, o império da urbanidade voluntária ao império da agressão gratuita e sem razão.

Noventa anos depois, parece que as portas dessa desrazão foram reabertas. Uma regressão inquestionável parece tomar conta de todas as interações humanas. O “declínio do Ocidente”, do qual muito se fala, não se percebe a olhos nus. Mas a degeneração da civilidade e da urbanidade pode ser notada em praticamente todas as esquinas.

Vive-se, hoje – que pode ser entendido como neste início de século 21 – o retorno inapelável de certa banalização da violência plural simbólica, física, verbal, institucional. Uma opinião diferente da média de determinada audiência, por exemplo, pode virar, em qualquer lugar do mundo ocidental outrora modelo de civilidade e urbanidade, motivo para ameaça, inclusive, de morte em lugar de estímulo para discussão e superação de diferenças via persuasão.

O descontrole das pulsões virou a regra. Basta uma visita rápida às bolhas das redes sociais, do noticiário ou dos espaços universitários – inclusive os mais nobres e de altíssima performance. Ninguém escuta ninguém. Ninguém respeita ninguém. Sim: isto é anomia.

Mas o caso Nahel veio indicar que, talvez, realmente, seja mais que somente anomia. Tudo que se viu e se vê desde 27-28 de junho na França desmascara, mais uma vez, a constatação indigesta de que algo cheira muito mal no coração do Ocidente.

A selvageria, o terrorismo, o banditismo, a barbárie, o mau gosto, a criminalidade sem propósito viraram o pão de cada dia nos principais países, nas principais capitais e nas principais cidades de todo espaço ocidental e extremo-ocidental, como é o caso do Brasil. Isso somado não é simplesmente, realmente, somente, anomia. É regressão.

Não há expressão mais apropriada para se compreender, por exemplo, as tormentas brasilienses de 8 de janeiro de 2023. Viu-se naquilo muitas claras e límpidas mostras de regressão.

Há cem anos, uma regressão virou alimento para ovos peçonhentos de serpentes indomáveis que encarnaram em tipos estranhos como Stálin, Hitler, Mussolini e afins. Resta saber se 1) a regressão atual configura, realmente, uma “descivilização” como percebe o presidente francês, 2) quais, em caso positivo, animais peçonhentos ela anda alimentando e 3) se teremos meios de contê-los antes do Armagedom.

(*) Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP.

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