Como as plataformas digitais estão revolucionando a promoção de saúde mental?
A Organização Mundial de Saúde estima que menos da metade das pessoas com depressão no mundo têm acesso ao tratamento. Esse é um dado alarmante, sobretudo em países em desenvolvimento, como o nosso, onde a prevalência de depressão está em torno de 14%. Apesar de termos avançado nas últimas décadas, ainda há muitos desafios no sentido de democratizar o acesso ao tratamento dos transtornos mentais. Em virtude disso, novas plataformas digitais vêm sendo desenvolvidas e ganhando espaço. O maior acesso à internet e o uso disseminado de smartphones apresentam o cenário ideal para o desenvolvimento da telepsiquiatria, com os aplicativos de smartphones para monitoramento e tratamento de sintomas e os algoritmos de inteligência artificial para a previsão de desfechos clínicos. Esses temas foram abordados em um recente livro publicado por nosso grupo de pesquisa, intitulado Digital Mental Health: A Practitioner’s Guide. O livro foi publicado pela editora Springer Nature.
Com a pandemia, aconteceu uma aceleração na implementação dessas tecnologias. Nesse contexto, consultas clínicas predominantemente oferecidas de forma presencial foram adaptadas para serem realizadas on-line. Tais adaptações exigiram dos médicos e dos conselhos reguladores o planejamento de ações que visassem à manutenção do processo terapêutico em períodos de distanciamento físico. Mesmo com a redução do avanço da pandemia, a telepsiquiatria, entretanto, cada vez mais ganha espaço em virtude da sua capacidade de prover cuidados de saúde virtualmente em regiões onde eles não possam ser realizados de maneira presencial. Além disso, em virtude de uma sociedade que cada vez mais preza por agilidade, o atendimento por telepsiquiatria tem sido utilizado com o objetivo de poupar o tempo de deslocamento também por aqueles que moram na mesma cidade do psiquiatra. Estudos têm mostrado que a telepsiquiatria tem sido bem-sucedida em termos de satisfação pelo clínico e pelo paciente, diminuindo as taxas de não comparecimento e reduzindo as barreiras logísticas.
Por outro lado, as intervenções digitais por aplicativos de smartphones vêm ganhando força no campo da saúde mental. Recentemente, a Food and Drug Administration, a agência de vigilância sanitária americana, liberou a prescrição digital de aplicativos para doenças psiquiátricas, como o transtorno por uso de substâncias e a insônia. Além disso, um número crescente de estudos científicos, incluindo metanálises, mostrou a eficácia e as limitações desse tipo de intervenção para outros transtornos mentais, como transtornos ansiosos, depressivos e bipolares. Esses aplicativos utilizam principalmente estratégias baseadas em psicoeducação, terapia cognitivo-comportamental, terapia comportamental dialética, entre outros tipos de psicoterapia estruturada.
Intervenções por aplicativos não substituem a consulta clínica, mas podem ser úteis em circunstâncias relacionadas ao baixo acesso aos serviços de saúde mental, o que é um problema crônico em muitos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos.
Os aplicativos também auxiliam aqueles que já estão em atendimento clínico com estratégias complementares ao cuidado realizado pelo profissional de saúde. Técnicas de automonitoramento, psicoeducação, mindfulness e outras ações estão disponíveis por aplicativos. Isso dará oportunidade aos pacientes de treinarem técnicas apreendidas nas consultas por meio de uma interface digital. Em última instância, o uso de aplicativos pode inclusive ajudar a combater o estigma associado à doença psiquiátrica.
Os dispositivos digitais também abrem caminho para o empoderamento dos pacientes. Muitos pesquisadores apontam o smartphone como um grande instrumento para capacitar os pacientes a gerenciar a sua própria saúde diariamente. As pessoas que o sistema de saúde não consegue alcançar certamente se beneficiariam de uma abordagem barata, segura e rápida para obter insights clínicos. Além disso, os chatbots, dispositivos baseados em linguagem natural, têm sido cada vez mais utilizados para a promoção e o cuidado da saúde mental.
A saúde mental digital também inclui técnicas de inteligência artificial, como algoritmos de machine learning para construir calculadoras de risco para prever quem irá tentar suicídio ou quem desenvolverá depressão, transtorno bipolar ou esquizofrenia. Por serem teoricamente capazes de modelar qualquer função, esses algoritmos podem encontrar padrões não lineares complexos relacionando preditores a desfechos clínicos. Isso poderá ajudar na identificação precoce dessas doenças, permitindo o desenvolvimento de estratégias preventivas. A expectativa é de que nos próximos anos esse campo avance e, eventualmente, tais modelos possam estar disponíveis no dia a dia do consultório médico.
São tempos excitantes os que estamos vivenciando no campo da saúde mental digital, mas esses avanços devem ser realizados com cautela e segurança para que de fato possamos prover valor à comunidade e aos nossos pacientes. Devemos, entretanto, ficar atentos às limitações e aos desafios. Com relação à telemedicina, é possível que nem todos os pacientes se sintam à vontade com o uso dessa ferramenta e que o próprio médico tenha sua avaliação prejudicada pela dificuldade de coletar informações não verbais na consulta, por exemplo. Já com relação ao uso de aplicativos, é importante que fiquemos atentos a questões relacionadas à privacidade de dados, ao embasamento científico e à usabilidade. Recentemente a American Psychiatric Association publicou uma série de orientações sobre como avaliar um aplicativo para saúde mental, levando ditos aspectos em conta. Já com relação ao uso de técnicas de inteligência artificial para prever desfechos clínicos em psiquiatria, reflexões relacionadas a aspectos éticos, como o impacto social que a previsão de um diagnóstico ou desfecho clínico pode ter na vida de um paciente, devem ser pesadas em relação ao benefício dessas técnicas.
(*) Ives Cavalcante Passos integra o Laboratório de Psiquiatria Molecular no Centro de Pesquisa Experimental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
(*) Flávio Kapczinski integra o Laboratório de Psiquiatria Molecular no Centro de Pesquisa Experimental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.