Da graça no escrever
Harold Bloom perguntava-se: Onde encontrar a sabedoria? Eis outro objeto fugidio: a graça no escrever. Ela está à disposição, naturalmente, dos leitores bem formados; que tenham à mão, por exemplo, uma antologia de textos de Rubem Braga. Mas como capturá-la e colocá-la a nosso serviço? Drummond, outro prosador inigualável, dizia ser possível encontrá-la “mesmo num antigo anúncio de besta perdida”, como expôs em crônica de 1954 (“O anúncio de João Alves”). Vendo-a escassa na comunicação corrente (o texto cujas qualidades estilísticas louva é de 1899), ele a surpreende em uma nota de jornal encontrada por acaso. O espírito sopra onde quer.
Autores como Braga e Drummond podem ser fontes de prazer e também de instrução. Ao lado de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Carlinhos Oliveira, Ivan Lessa, eles nos ensinam a valorizar uma ingenuidade virtuosa, a atenção aos efêmeros milagres do cotidiano, que um fraseado acertado pode captar. Seus dons linguísticos podem nos intimidar, mas também nos estimular. Eles vivem, como nós, “ao rés-do-chão”, conforme dizia Antonio Candido.
A leitura admirativa é necessária para quem escreve, mas não é suficiente. Esqueçamos as definições de tipo científico. Uma abordagem puramente analítica é de pouca utilidade. Felizmente, há outros recursos educativos ao nosso alcance. Lembrando que a crônica é herdeira do “ensaio familiar” inglês, como apontou Vinícius de Moraes, notemos que um gênero aparentado, a “carta familiar”, foi bem mapeado por tratadistas clássicos. E de modo particularmente amistoso pelo humanista flamengo Justo Lípsio (1547-1606), em um manual voltado para os iniciantes na arte epistolar.
Ali ele caracteriza a carta familiar como aquela cujo tema concerne “às coisas nossas ou em torno de nós, às coisas frequentes na vida”. Elogia sua forma “negligenciada ou inexistente”, como nas conversas, em que apreciamos algo descuidado e desorganizado. Trata-se, claro, de uma “incúria conveniente”, a negligentia diligens sugerida por Cícero, que, como missivista, abunda em hesitações e retomadas, “e de nada parece cuidar mais do que de mostrar que de nada cuidou”. Quanto ao estilo, convém à carta aquele que chama de “coloquial”, orientado por cinco princípios: “brevidade, clareza, simplicidade, elegância e decoro”.
A brevidade seria a primeira virtude do estilo, observando-se que, tal como na conversação, “na carta é odiosa a tagarelice”; essa afeta sobretudo os inábeis, sendo os mais loquazes, em geral, os menos eloquentes: “como aqueles mirrados de corpo que o avolumam com as roupas, os destituídos de engenho ou sabedoria derramam-se nas palavras”. Como tornar o estilo breve? Pela observação dos assuntos (“para que nada supérfluo acrescentes, nada repitas”), da composição (evitando os períodos longos) e da linguagem (“que as mais ornadas frases, alegorias, imagens sejam rejeitadas; que tua linguagem seja sóbria e pura”). Quanto à clareza, diz: “O maior vício do estilo não é ser mal compreendido, mas ser compreendido com dificuldade". Alguns se enganam pela natureza, que lhes produz ideias obscuras; mas há os que o fazem por estudo, e isso afugenta os espíritos comuns. “Estultos! É engenhoso o bastante quem pode ser compreendido por um mero esforço de ingenuidade, especialmente numa carta, que não deve exigir um perito ou um intérprete”.
A simplicidade deve prevalecer tanto no pensamento como no estilo. Seguindo o exemplo dos antigos, esse deve ser semelhante ao da conversação diária. Que a carta seja escrita como um diálogo, com palavras cotidianas, e seja ornada sem o parecer. Quanto ao pensamento, deve transparecer no escrito “um certo tipo de simplicidade e delicadeza” que desvende “uma certa candura de espírito livre”; e em nenhum lugar a natureza e a personalidade de alguém transparecem tão bem quanto em uma carta. Assim, “deves salpicar a carta de afável sentimento e boa vontade, como se de açúcar a polvilhasses”.
Com a elegância e o decoro nos aproximamos de nosso ponto principal, os mistérios da escrita graciosa; pois o decoro depende do juízo, a elegância, do talento – e “ambos dispensam os laços das regras”. O estilo é dito elegante quando é, “no geral, leve, vivo e elevado, e revela certa graça cativante e encanto”. Embora seja a elegância “usualmente um dom da natureza”, dois conselhos teriam lugar: primeiro, “deves algumas vezes mesclar provérbios e alusões a antigos ditos ou feitos e trechos de versos ou máximas de sabedoria”; depois, “deves temperá-la oportunamente com gracejos e ditos espirituosos", os quais seriam “a vida e a alma de uma carta”. Finalmente, o decoro é a adequação à pessoa e ao assunto. Ele é “uma grande mas oculta virtude”. Cícero adverte-nos: "no discurso, como na vida, nada é mais difícil do que ver o que é adequado”. Guia-nos aqui, basicamente, o esprit de finesse.
A abordagem do estilo comporta ainda referências ao léxico e à articulação das palavras. Se essa solicita “elegância e brilho”, no vocabulário o essencial é a correção e a propriedade, qualidades que se extraem da conversação e, sobretudo, da leitura (“as coisas ouvidas não aderem à mente tão bem quanto as lidas”). Mas essa é útil apenas quando suscita a imitação “da adequada forma de nosso estilo, modelada conforme o dos antigos”. Ela então promete “uma crescente colheita de frases e palavras”, convenientemente recolhidas em cadernos de anotações.
O leitor terá percebido as convergências entre a carta familiar e a crônica: coloquialidade, negligência calculada para produzir o tom ameno, abordagem das coisas “próximas a nós". Não é de se estranhar, visto que o essay britânico está, como a crônica, impregnado do espírito de conversação que anima a arte epistolar.
Drummond elogia, na prosa de João Alves, “a graça no dizer”, mas também a “precisão de termos”, a “moderação”, a “atitude crítica” e finalmente o “amor à tarefa bem feita”: algo que o esforço e o exercício podem favorecer. Não estamos distantes das ponderações de Justo Lípsio. São regras de uma sabedoria prática, orientadas não para a “vida feliz”, mas para a “expressão feliz”, igualmente elusiva e igualmente desejável. E se a graça não nos for dada por acréscimo, que ao menos saibamos evitar a prolixidade, a extravagância vocabular e a arrogância declamatória do textão!
(*) Alexandre Soares Carneiro, professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).