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Ensino superior pós-covid-19

Demetrio Luis Guadagnin (*) | 20/12/2021 13:11

A pandemia induziu rápidos e às vezes dramáticos ajustes nos modos de ensinar e aprender em todos os níveis de ensino. Com a progressiva retomada da normalidade surgem debates sobre quais aprendizados e tendências permanecerão. Nesse artigo faço um apanhado de elementos frequentes na literatura internacional sobre os problemas, vantagens, desafios e oportunidades da digitalização do ensino nas universidades, das tendências (ou expectativas) em relação ao futuro do ensino superior, de algumas propostas em pauta e dos temas principais na esfera política global. Várias pautas um pouco esquecidas nos últimos anos ressurgem, ressignificadas pela cibercultura. E nós, por onde começamos?

Ao se forçar professores e alunos a interagirem apenas digitalmente, uma série de problemas e desafios apareceram, alguns relacionados com assimetrias. Os primeiros foram a heterogeneidade de acessibilidade – acesso a recursos digitais, tanto de professores quanto de alunos, e de inclusão –, a capacidade de receber e atender necessidades especiais, digitais ou não, incluindo de professores. As experiências educativas foram heterogêneas em consequência dos diferentes níveis de apropriação das tecnologias digitais pelos professores e das desigualdades digitais entre os alunos. Houve também grande heterogeneidade na incorporação de estratégias e ferramentas de educação online dentro de e entre instituições. De um modo geral, aqueles já engajados em modelos EaD adaptaram-se melhor e mais rapidamente.

Paralelamente, problemas relacionados ao afastamento da vida no câmpus também afloraram. Houve perda de engajamento em atividades, especialmente as não obrigatórias, e perda do senso de pertencimento, levando ao progressivo distanciamento e à evasão. As dificuldades já existentes de integração ensino-pesquisa-extensão se transformaram em abismos.

A intermediação das máquinas nas relações humanas enfraquece laços e alimenta apatia e alienação, e o ensino remoto alimenta esse processo. Proporcionar experiências concretas e significativas é essencial como apropriação da realidade. A intermediação das máquinas não apenas rompe laços humanos, mas também reorganiza a forma como percebemos o mundo ao nosso redor – uma fabricação poderosa com consequências imprevisíveis. Afinal, o mundo não é uma tela.

A linguagem e o modo de relacionamento no universo digital têm sua própria cultura, e o modo de ensinar, aprender e fazer ciência não combina muito com ele. O ceticismo científico, a verificação e a crítica se enfraquecem, porque o universo digital é mais volúvel à aceitação tácita de pretensas autoridades, à sedução das imagens e das sensações e a informações rápidas e descontextualizadas.

Alunos e professores concordam em algumas vantagens e oportunidades do ensino digital. A flexibilidade de horários e modos de engajamento facilita a participação. O universo digital também favorece uma maior proatividade e encoraja a autonomia. Ele também facilita novos modos de proporcionar experiências personalizadas e centradas no aluno. A forma de pensar dos jovens já é influenciada pela rapidez e impermanência das informações digitais, de forma que se adaptar a essa influência da mediação das máquinas pode ser inevitável. Ela também concorda com a tendência de a internet se afirmar como artefato cultural e com o avanço da cibercultura.

A realidade vivida ao longo do período de ensino remoto sugere algumas tendências ou, pelo menos, expectativas sobre como o ensino universitário poderá se reconfigurar daqui para frente. Muitos professores e alunos esperam que parte das atividades prossigam de forma digital em sistemas híbridos. Ressurgem debates sobre uma progressiva mudança no formato das carreiras, de tempo constante/aprendizado variável para aprendizado constante/tempo variável.

O formato do ensino, passada uma fase experimental bastante heterogênea em experiências, pode evoluir do ERE para o “Hyflex” e o “b-learning” (Blended-learning, híbrido). Esses modelos vão além do já tradicional EaD, aproveitando as ideias de design pedagógico, produção de material, avaliação digital e online, etc. Os MOOCS (massive open online courses) devem se expandir talvez como elementos dentro uma carreira flexível. Mesmo nas atividades presenciais a digitalização deve estar mais presente com a expansão do fenômeno BYOD (Bring Your Own Device), com mais desafios de inclusão. A metodologia da sala de aula invertida (“flipped classroom”) simula os novos modos pelos quais as pessoas aprendem e interagem umas com as outras.

A experiência remota renovou também a ideia, de já mais de 20 anos, de descompactar as trajetórias em certificações progressivas ou modulares. O universo digital permite agora flexibilizar também os calendários de matrícula e desenvolvimento. Além disso, facilita a ampliação do portfólio de ofertas, amplifica o rol de potenciais interessados em ensino superior e de oportunidades de acesso à universidade (outras ideias reaquecidas). Finalmente, facilita individualizar as trajetórias por meio de um currículo efetivamente realizado e customizado.

Em termos de avaliação, as experiências mais promissoras envolvem uma maior valorização das chamadas “habilidades suaves” – a capacidade de comunicação efetiva e de aprendizado ativo e qualidades para o trabalho colaborativo. A avaliação tende a mudar de foco – aplicação de conhecimentos em vez de acúmulo de conteúdos (deixar de testar o que é testável e avaliar o que é importante).

Têm sido retomadas as reflexões sobre o papel do professor no ensino universitário. Os novos modos de ensinar ressaltaram as reflexões sobre os professores deixarem de ser eles próprios um recurso de conteúdo para o aluno e assumirem uma função de orientadores/tutores da formação – provedores de indicação de acesso a informações relevantes, problematização e “coaching” da trajetória. Outra mudança vivida que tende a persistir é a ampliação e ressignificação do envolvimento de esferas extracâmpus, como familiares, coletivos diversos, fóruns digitais. Tais envolvimentos podem tanto ser facilitadores como criadores de obstáculos. Em ambos os casos, o professor assume o papel de norteador do envolvimento e do aprendizado. Esse pode ser um papel importante frente à erosão de contratos e carreiras em favor de um ensino cada vez mais digitalizado e automatizado.

Algumas ideias têm sido sugeridas como primeiros passos para a transição. Elas incluem a criação de bancos de aulas virtuais curtas que podem ser oferecidas sob demanda; recomendações personalizadas de conteúdos conforme interesses pessoais, com retorno sobre o aprendizado; proposição de tarefas com maior foco em resolução de problemas, preferencialmente de forma colaborativa.

Outras ideias começam a ser experimentadas e podem vir a fazer parte dos novos modelos. Elas incluem coisas como bots para reconhecer, responder e engajar alunos em comunidades de aprendizado, a personalização da aprendizagem e a customização das classes com ferramentas como Power Apps, Power Virtual Agents e Power Automate, a disponibilização de estúdios e equipes de apoio para criação de conteúdos digitais e o uso de tecnologias de games para criar experimentos e tarefas.

As prioridades dos alunos vêm mudando nos anos recentes. Eles esperam da universidade maior conexão e engajamento com suas comunidades e mais preparação para o mundo do trabalho. Essas expectativas vão influenciar as escolhas de universidades, trajetórias e colocações no mercado de trabalho. Os novos modelos facilitarão a ampliação das oportunidades de escolha entre carreiras, formatos e instituições.

As pautas no plano político internacional não apresentaram novidades relevantes com a crise sanitária. Seguem sendo prioridades comprometer a sociedade com a educação como bem comum, consolidar a inclusão digital como parte do direito à educação, valorizar a profissão de educador, proteger e promover as escolas como espaços sociais de engajamento, reforçar a alfabetização científica e proteger o financiamento público.

Os desafios globais à universidade se intensificaram com a crise sanitária e o avanço neoliberal. Mas existem oportunidades. Aquelas instituições mais preparadas terão mais condições de enfrentar estes tempos turbulentos. Um caminho possível inclui rejeitar o modo ERE em favor de um modelo híbrido permanente, ainda a ser desenhado, além de pensar e desenvolver cada nova adaptação na direção de mudanças definitivas em vez de focar em ajustes transitórios. Essas ações podem exigir o início também de mais um processo de transformação curricular e organizacional, também inquietante.

(*) Demetrio Luis Guadagnin é professor do departamento de Ecologia da UFRGS.

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