"Escrever é querer vencer"
William Shawn foi um famoso editor da New Yorker, por cujas mãos passaram obras de Truman Capote, Edmund Wilson, Mary McCarthy e Hannah Arendt. Certo jornalista, após ter um artigo por ele cuidadosamente reelaborado, afirmou que o texto, ao final, pertencia também a Shawn. "Ele pertence a você", foi a resposta. "Eu apenas o tornei mais seu".
João Moreira Salles narra o episódio (no posfácio a O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell) como um tributo ao grande editor. Mas a dúvida do jornalista e a frase de Shawn não deixam de conter intuições sobre a "crise identitária” daquele que escreve de modo consciente.
Montaigne investiga o problema no capítulo "Da palavra pronta ou lenta". O escritor declara ali que as ideias concebidas com esforço não valem as que lhe ocorrem de modo natural. "A ocasião, a companhia, o próprio ritmo de minha voz extraem mais do meu espírito do que nele encontro quando o sondo e o requisito a sós.” E ainda: “não me encontro onde me procuro, e me encontro mais por acaso do que por investigação do meu discernimento” (Ensaios, I,10).
Intriga ao autor a éstrangeté desse processo descentralizado e não linear de geração do discurso, em que contrastam “espírito” [esprit] e “discernimento” [jugement]. Conceitos formulados na antiguidade e recuperados no renascimento, eles descrevem fenômenos regulados pelas "artes da palavra".
Os tratadistas da oratória entendiam que o sucesso de um discurso depende dos dotes naturais do orador, desenvolvidos pela “arte” (a Retórica, no caso) e pelo exercício. Tais dotes seriam o ingenium (o “espírito”, o fogo do talento), o iudicium (o discernimento, pautado pelo bom senso e pelo bom gosto) e a memoria (essencial em uma cultura predominantemente oral).
No Orator, Cícero confere papel chave à triagem judiciosa dos argumentos. “O que há de mais fecundo que o espírito (nihil enim est feracius ingeniis), sobretudo quando cultivado pelo estudo? Mas como as terras mais férteis produzem ao mesmo tempo o bom grão e ervas funestas, dali podem nascer pensamentos frívolos, estranhos ao tema e inúteis; isso exige do orador bastante discernimento (iudicium)”.
Em outro capítulo dos Ensaios (I, 8, “Da ociosidade”), Montaigne desenvolve a analogia com as terras "ricas e férteis” que, mantidas ociosas, geram “cem mil espécies de ervas selvagens e inúteis”. Mas justifica o registro das “quimeras e monstros fantásticos” engendrados por seu espírito ocioso em nome da esperança de que eles sentissem, com o tempo, vergonha de si mesmos… Assim caracteriza, com modéstia antes irônica que afetada, seu próprio livro.
Cícero via como o mais importante dever do orador a busca do estilo adequado. Mas, aqui, as boas opções seriam várias: “a língua é algo tão delicado, tão flexível, que se presta a todos os caprichos; e a diferença de espíritos e gostos pode produzir diferentes tipos de estilos”. Faz sentido desenvolver múltiplos talentos, quando a tarefa é persuadir.
Em Humano, demasiado humano II, Nietzsche ecoa esse tipo de preocupação, mas deslocando-a a planos em que se pode e deve pensar segundo uma hierarquia de estilos. Em primeiro lugar, porque melhorar o estilo “significa melhorar o pensamento, e nada senão isso!” (aforismo 131). A triagem do vocabulário é mais sutil ("Cada palavra tem seu cheiro", 119) e interfere na forma e no tom dos argumentos, o que não é pouco relevante.
Mas escrever bem não é apenas pensar bem, é afirmar um bom modo de vida. Por isso, ensinar o estilo seria ensinar a encontrar “a expressão mediante a qual se comunique todo estado de espírito ao leitor”; mas também “a expressão para o mais desejável estado de espírito de alguém”: o de uma alma alegre, clara e reta, “que superou as paixões”; tal estado de espírito corresponderia “ao ser humano bom” (88).
Assim, quando faz o elogio do estilo simples, Nietzsche parece associá-lo a certa saúde espiritual. “Aprende-se mais rapidamente a escrever de modo grandioso do que a escrever de maneira leve e simples. As razões para isso se perdem no âmbito moral” (148). A frase evoca as investigações "genealógicas'' do autor e nos leva a refletir sobre a elocução grandiosa que se infiltra em muitos dos nossos ambientes; sobretudo em alegações de cunho político, nas quais é compartilhada por progressistas e reacionários.
Premidos pelas grandes tragédias, morais ou sociais, uns e outros abandonam a prudência e a modéstia quando se trata de se colocar no mundo por meio da escrita. O catastrofismo de que se alimentam só lhes deixa uma resposta: posicionarem-se como gente de sólidas convicções e solenes missões. Para o reacionário, isso significa vigiar escolas e museus, ser duro com os criminosos e evocar uma idade de ouro da conduta inocente. Para o progressista, que devemos mudar o cânone, reformar o ethos estabelecido, vigiar nossa linguagem, adequá-la às novas pautas e avançar rumo a uma redentora terra prometida. Poderia tal ambição heroica corresponder a algum tipo de bom estilo ou bom afeto? Com Nietzsche, diríamos: dificilmente.
Em outro aforismo, “Escrever e querer vencer” (152), ele nos lembra que essa atividade “deveria sempre indicar uma vitória, uma superação de si mesmo”, a ser comunicada para benefício dos outros. Não se trata de impor-se ao mundo, mas a si mesmo. O torna-te aquilo que és se traduziria em: triunfe sobre si, no discurso, e supere o próprio desejo de convencer. Diria La Bruyère: "Deve-se buscar apenas pensar e falar com precisão, sem desejar conduzir os demais ao nosso gosto e a nossos sentimentos; é um empreendimento demasiado grande."
(*) Alexandre Soares Carneiro é professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).