Fazer Linguística é fazer o quê?
Em meio a crise negacionista que vivemos de 2018 a 2022, a popularização da ciência tem se mostrado peça-chave para superar os desafios de sobrevivência e da sustentabilidade do planeta. Reafirmando a sua posição vanguardista, a Associação Brasileira de Linguística (Abralin), em parceria com a editora Mercado de Letras, inaugurou uma série de livros de popularização da Linguística para um público amplo, e que tem como cerne problematizar a seguinte questão: O que pode esta língua?
Já foram lançados em 2022 três volumes que reforçam “(...) o compromisso da Abralin com a sociedade, promovendo justiça social ao democratizar o acesso ao conhecimento, ao mesmo tempo que fomenta novos linguistas para adentrar em uma campo ainda tão desafiador que é o da Linguística ”: i) Como uma língua funciona?: fundamentos (muito básicos) de linguística, de Luisandro Mendes de Souza; ii) Que tal a Linguística com uma colher de açúcar: textinhos adocicados sobre a linguagem, de Luisa Godoy; e iii) Escola e [linguística] e o lugar de política?: uma análise discursiva da Escola sem Partido, de Hélio Oliveira.
Estes livros, que tive o prazer de ler no início deste ano, apresentam temas variados, com uma linguagem leve, clara e didática, e até com sugestões bibliográficas para que o/a leitor/a possa aprofundar naquele tema ou conceito/constructo tratado. Isto para mim é fazer ciência. Isto é “fazer linguística”. Contudo, por várias décadas, muitos pesquisadores/as filiados/as a campos específicos da Linguística brasileira tiveram como objetivo principal apresentar, discutir e problematizar questões de língua(gem) a partir de epistemologias e ontologias que muitas pessoas da sociedade não compreendiam, e que refletiam muito, por sua vez, um fazer/pensar/agir do Norte Global.
Percebo, sinto e vivencio hoje um certo movimento no qual tem sido caracterizado na literatura acadêmico-científica como “Epistemologias do Sul” e/ou “Vozes do Sul”, que se alinhavam a uma perspectiva decolonial de (re)construção e disseminação dos conhecimentos. Em síntese, o que eu postulo neste artigo é a viabilização e a (re)construção de visões e teorizações que sejam (re)construídas a partir dos diálogos e debates, a partir de perspectivas contemporâneas, plurais, críticas e antirracistas; trazendo assim também as vozes subalternizados.
Sendo assim, que nós como pesquisadores/as da língua(gem) possamos, a partir de uma perspectiva democrática, agentiva e decolonial, ouvir as vozes dos marginalizados/as e/ou periféricos/as, cidadãos que foram “silenciados” e que foram “invisibilizados” no contexto brasileiro.
Assim contagiado pelas pesquisas contemporâneas realizadas na área da Linguística Aplicada Crítica e em diálogos com outras áreas do conhecimento; e refletindo no que escrevera o sociólogo Boaventura de Sousa Santos: “Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem; lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”, chego a conclusão de que temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades que tivemos e mantivemos.
Que possamos compreender e analisar à luz dos estudos científicos os “Brasis” presentes em nosso país, a partir de um olhar e um agir crítico, emancipatório e planetário. E por eu ser freireano de “carteirinha”, vejo uma descortinar de estudos acadêmico-científicos em prol e com as diversidades para um espetáculo decolonial, transfronteiriço e agentivo em respeito aos direitos humanos ter início. Isto para mim é fazer Linguística.
(*) Kleber Aparecido da Silva é professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília.