Genomas do passado
“O DNA é como um sorvete”.
Foi com essa simples frase que Svante Pääbo começou a palestra a qual pude assistir há cerca de 15 anos na Universidade de Cambridge. À época, eu trabalhava como pesquisadora-curadora da coleção de remanescentes humanos da universidade, e a vinda de Pääbo para o ciclo de palestras do meu instituto era esperada com ansiedade. Nos surpreendeu sua simplicidade e sua didática em explicar quais eram os desafios para desenvolver pesquisa com DNA antigo, como tais desafios vinham sendo contornados, assim como qual a importância dos resultados até então obtidos.
A analogia com o sorvete se referia a fragilidade da molécula de DNA, especialmente em relação ao calor: o DNA se preservaria melhor em ambientes frios. Essa era apenas uma das muitas limitações da área. Contaminação de ossos, tecidos, cabelos e dentes, dos quais se almejava extrair DNA, por DNA mais recente (incluindo o dos próprios pesquisadores que manipulam o material) era (e ainda é) uma grande preocupação. O próprio Pääbo teria sido vítima desse problema no início de sua carreira: as primeiras sequências de DNA antigo de uma múmia egípcia publicadas por ele em 1985 eram, na verdade, provenientes de contaminação com DNA humano atual.
Desde então, o campo da paleogenômica desenvolveu novas tecnologias e protocolos de pesquisa mais rígidos, sendo um excelente exemplo de como boa ciência deve ser feita: reconhecendo erros e consertando-os a partir da revisão de seus métodos. O trabalho duro de se criar um novo campo de conhecimento (a paleogenômica), aliado aos resultados fascinantes obtidos acerca dos nossos ancestrais, foi finalmente reconhecido. Neste ano, o prêmio Nobel em fisiologia ou medicina foi concedido a Pääbo “por suas descobertas sobre os genomas de hominídeos extintos e a evolução humana”.
Pääbo e sua equipe sequenciaram os genomas de neandertais e os denisovanos, duas espécies extintas que conviveram com nossos ancestrais humanos (Homo sapiens) na Eurásia. Essas pesquisas mostraram um cenário bastante complexo e intrigante de cruzamentos entre essas três espécies no passado, incluindo a geração de híbridos. Tal evidência nos provoca a pensar sobre a natureza da interação de nossos ancestrais humanos após sua saída da África (de onde nos originamos entre 300 e 200 mil anos) com neandertais e denisovanos: como teriam sido esses encontros? Como teriam se comunicado e interagido? Haveria grupos mistos dessas espécies, compartilhando não apenas parceiros, mas também hábitos culturais? Sabemos que neandertais apresentavam comportamento complexo e que seu repertorio cultural era bastante rico, com uso de fogo, conhecimento sobre plantas com potencial medicinal, fabricação de adornos e realização de arte em cavernas. Assim, uma interação mais profunda entre neandertais e nossos ancestrais não seria exatamente surpreendente e já vinha sendo postulada, baseada na morfologia um pouco distinta de alguns poucos esqueletos dessa época. Dessa forma, a pesquisa de Pääbo contribuiu para apoiar tais hipóteses acerca do cruzamento entre humanos e neandertais (até então bastante impopulares entre pesquisadores) e para trazer à luz novos dados sobre os denisovanos, uma espécie misteriosa da qual se conhece muito pouco em termos de morfologia (o primeiro DNA denisovano foi extraído a partir de um osso de dedo, encontrado em uma caverna na Sibéria).
Além da contribuição ao conhecimento sobre nossa evolução, Pääbo ainda deixa como legado a criação de um novo campo de conhecimento: a paleogenômica. Atualmente, há muitos laboratórios no mundo trabalhando nessa área, a maioria focada na análise de DNA antigo de populações de Homo sapiens mais recentes de regiões especificas do globo. Dado que tais pesquisas são realizadas a partir de remanescentes humanos mais recentes que muitas vezes podem potencialmente ser considerados ancestrais de grupos indígenas atuais, alguns resultados podem ter um impacto até mesmo político bastante relevante, ao gerar conhecimento acerca do território original de um dado grupo, por exemplo. No Brasil, pesquisas vêm sendo desenvolvidas na área do DNA antigo e têm sido importantes para complementar, apoiar ou contrastar hipóteses propostas por pesquisadores acerca dos mais antigos habitantes do nosso atual território. Ainda, passada a euforia dos primeiros anos de desenvolvimento dessa área de pesquisa tão fascinante, acadêmicos interessados em entender melhor a dinâmica populacional de migrações, interações e eventuais extinções de grupos humanos no passado a partir do DNA, começam a reconhecer que nenhuma área sozinha produz respostas “finais” para uma dada pergunta cientifica e que a integração de diferentes áreas de conhecimento (como estudos de cultura material, de morfologia esqueletal e de linguística) aos dados gerados pelas pesquisas de DNA antigo fornecem um cenário muito mais rico e completo do nosso passado.
(*) Mercedes Okumura é professora do Instituto de Biociências da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP
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