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Governar e harmonizar

Waldenyr Caldas / Jornal da USP (*) | 10/03/2023 08:30

O terceiro mandato do presidente Lula é algo inusitado na história política do Brasil. Isto significa, entre outras coisas, que ele se tornará o chefe do Poder Executivo mais experiente neste cargo, entre todos os presidentes que já tivemos. Este seu mandato, no entanto, tem características inteiramente diferentes dos anteriores, tanto no plano nacional, quanto internacional. O resultado das últimas eleições mostrou, de forma inequívoca, que o País está realmente dividido. Vejamos os dados oficiais do TSE — Tribunal Superior Eleitoral: Lula teve 50.90% dos votos, com 60.345.999 eleitores. Já Bolsonaro, 49.10% dos votos, com 58.206.364 eleitores. Esses dados apenas confirmam a grande dificuldade que o governo terá de enfrentar ao longo dos quatro anos de mandato. Até porque esses obstáculos não vêm apenas da divisão do eleitorado, mas também do Congresso Nacional, onde as negociações e o jogo político não envolvem apenas os interesses da sociedade, e de grupos com outros objetivos obscuros e nem sempre detectados no Plenário. Não deveria ser assim, claro, mas é.

Por outro lado, o resultado das eleições consolidou a vitória do presidente Lula e, com ela, o que se espera é que o clima hostil e de extrema animosidade que marcou toda a campanha de ambos os candidatos desapareça. Mas, passados quase dois meses da posse, observa-se que, lamentavelmente, isto não está acontecendo. O episódio de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, se caracterizou por uma tentativa de golpe de Estado até bem planejada, mas, para a felicidade geral da nação, foi muito mal-sucedida. Serviu apenas para recrudescer ainda mais os ânimos de uma população já dividida pelo sufrágio universal, como bem mostram os dados estatísticos oficiais já citados.

Devemos então nos perguntar sobre o seguinte: a quem interessa e quem pode se beneficiar com um ambiente político cada vez mais tumultuado e nebuloso como temos visto? Caro leitor, esta é uma indagação relativamente fácil de responder, mas tem alguns meandros bem sutis que precisam ser analisados. Seguramente, o governo do presidente Lula deseja paz e tranquilidade política para governar o País. Seria uma insensatez pensar diferente disso. Os eleitores que o elegeram, e até mesmo — por que não? — uma parte do eleitorado que votou no ex-presidente Bolsonaro, mas que reconhece a vitória do seu adversário, independentemente de questões político-ideológicas, também não desejam ver o País tumultuado.

Pois bem, é evidente que quem ganha com esse tumulto é exatamente quem procura fazê-lo, ou seja, a oposição raivosa e inconsequente de alguns partidos políticos de direita, que amiúde têm flertado com o fascismo. Ora, ora, o governo Lula não tem nada a ver com isso. A tentativa de golpe de Estado em Brasília, as ameaças de morte a autoridades e seus familiares, o jogo sujo de conivência com a desordem, com a balbúrdia, são problemas de Estado, e não especificamente do governo do presidente Lula.

Quem corre o risco com tudo isso é o Estado de Direito e a própria democracia do País; isto é muito grave e ao mesmo tempo, inadmissível. Portanto, tem a ver, isto sim, com a justiça do País. São crimes que competem ao Poder Judiciário analisar, julgar e tomar decisões baseadas nas leis. Em uma democracia representativa, os três Poderes dividem a responsabilidade de dirigir o País dentro dos princípios da ação e da liberdade. Sendo assim, portanto, o presidente da República não tem nada a ver com isso. Quando julgados, os inocentes devem ser absolvidos, claro, mas os culpados, ao contrário, terão de responder pelos crimes que cometeram. Esta é a melhor forma de se fazer justiça.

Para o bem do Estado e da sociedade, entendo que os políticos, quando em situações de discordância, deveriam se ver apenas como adversários que têm propostas diferentes para melhorar a vida do seu povo, mas não é isso o que ocorre. O jogo de interesses escusos e alheios à qualidade de vida e ao bem-estar da população faz com que uma parte destes políticos passe a ver seus pares como verdadeiros inimigos. A partir deste momento, qualquer atitude passa a ser “normal” para que se alcance os objetivos desejados. É assim também que se desvirtuam os verdadeiros objetivos da política, criando sérias cisões no ambiente do Congresso Nacional entre os bons e os maus políticos.

Pois se nesse momento, o mau político passa a ver seu colega de parlamento como um inimigo e não mais apenas um adversário político, há que se pensar nos desdobramentos desta situação. Uma coisa, porém, é certa: o que menos importa, nesse momento, são os interesses do Estado e da sociedade. Prevalecem as preferências, os quefazeres de grupos, do capital empresarial, infiltrados no parlamento com seus representantes e que foram beneficiados durante sua campanha eleitoral.

O presidente Lula é um político de muita experiência no métier, e sabe como se dá esse jogo no momento das discussões no Congresso. Como chefe do Poder Executivo, ele saberá muito bem como administrar situações como esta. Aliás, como já mencionei em artigo anterior, em todo o mundo, é o presidente que terminou seu mandato com a maior porcentagem de aprovação popular, sendo seguido por celebridades políticas como Charles de Gaulle, Michelle Bachelet e Nelson Mandela, por exemplo. Não é pouco, convenhamos, ele soube se relacionar muito bem com o Poder Legislativo e evitar confrontos. Quando tem a palavra, Lula é um orador expressivo, possui o talento e a arte do discurso. Jamais usou da retórica vazia, da logomaquia para se dirigir ao eleitor, ao cidadão comum. Hábil com o verbo, escolhe as palavras desembaraçadamente, gesticulando sempre com grande eloquência. Enfim, pode-se dizer que nosso presidente é um verdadeiro tribuno, ou seja, um orador popular que defende com muita veemência os direitos do seu povo e até nos faz lembrar como isso acontecia na Roma antiga.

Mas, certamente por isso mesmo, tem seus adversários políticos nos três Poderes da República. Lula é um tribuno brasileiro; é reconhecidamente, no plano internacional, um defensor intransigente dos direitos do nosso povo. Por conta dessa virtude, mas principalmente, por ser o nosso presidente, seus pronunciamentos públicos são da maior importância para a sociedade. Isso é muito bom, de vez em quando o povo precisa ouvir seu presidente. Entre outras coisas, é assim também que se aprimora a democracia; com informações da autoridade maior do país ao seu povo. A interlocução com o eleitor, com as pessoas dispostas a conversar sempre foi o seu forte. Para grande parte da população brasileira, suas palavras são inteiramente críveis. Se falou, está falado, não há tergiversações.

Como seu eleitor que fui nas últimas eleições presidenciais, sinto-me à vontade para tecer algumas considerações de como nosso presidente tem conduzido essa hostilidade doentia que vem recebendo dos correligionários do ex-presidente Bolsonaro. São tantas as agressões pessoais, que aos poucos estão se tornando algo corriqueiro, uma espécie assim de déjà-vu. Tanto é assim, que sistematicamente, os agressores procuram criar fatos novos, ainda que sejam falsos. São factoides e nada mais, que só contribuem para o descrédito cada vez maior de uma oposição raivosa, predadora, que trata seus adversários como se fossem inimigos. Este comportamento é, na verdade, uma espécie de “guerrilha midiática”, uma estratégia para tumultuar, para desestabilizar o ambiente político no País, e alimentar a esperança de um golpe de Estado já sepultado, a partir do momento em que o novo governo fez importantes mudanças no âmbito das Forças Armadas, órgãos corresponsáveis pela estabilidade democrática, como constatamos na tentativa de golpe no dia 8 de janeiro de 2023. Este tipo de atitude da direita raivosa é absolutamente irresponsável.

Querer obstaculizar o trabalho do atual governo, no sentido de saciar a fome e devolver a dignidade a nada menos de 33,1 milhões de brasileiros alijados do processo produtivo, é no mínimo uma absurdidade, um verdadeiro atentado ao bom senso e à justiça social. Convém registrar que estes dados foram divulgados em 2022, pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, durante a pandemia de covid-19. Ora, isto não serve a ninguém. Criar um clima de beligerância, de desarmonia, não é fazer oposição (o que seria legítimo), é atrasar o desenvolvimento do país, é prejudicar o avanço da sociedade para outro estágio de vida mais justo a todos.

A volta do ex-presidente Bolsonaro ao Brasil provavelmente reavivará os ânimos das agressões, entre outras coisas, porque ele poderá se tornar inelegível por um determinado período a ser estabelecido, conforme a Lei de Inelegibilidade — Lei Complementar n.º 64, de 18 de maio de 1990, art. 14, parágrafo 9º, da Constituição Federal. Esta decisão da justiça, se de fato acontecer, certamente causará alguma reação e poderá acirrar ainda mais os ânimos no quadro político brasileiro. De qualquer forma, é uma decisão da justiça e precisa ser cumprida. É importante registrar, que seu staff tem aconselhado a não retornar ao Brasil neste momento. Todas as instituições e as pessoas defensoras da democracia devem estar atentas a esta volta do ex-presidente e, sobretudo, sempre que possível, evitar conflitos de qualquer espécie.

E aqui quero fazer algumas observações sobre a forma veemente dos discursos do presidente Lula quando se dirige a todos nós. Em determinados momentos, o eleitorado do ex-presidente passa a ser esquecido. É como se só existissem os 50,90% do eleitorado brasileiro. Não é necessário citar outros exemplos, embora eles existam, mas quero apenas lembrar seu último pronunciamento no interior da Bahia, em Santo Amaro. Falando aos seus espectadores sobre a retomada do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, ele disse que ainda pode demorar um pouco, afinal, seu governo tem apenas 40 dias e alguns empecilhos a superar. Em determinado momento, explicando suas medidas para iniciar o programa habitacional, ele disse: “… A gente ainda nem conseguiu montar as equipes que tem que montar, porque nós temos que tirar bolsonaristas que estão lá há tempo. E a responsabilidade de tirar eles é do Rui Costa. É o Rui Costa que tem que assinar as medidas para tirar aquela gente que está infiltrada dentro do nosso governo…”. Apenas para esclarecer, Rui Costa é o atual ministro da Casa Civil. Eloquente e preciso como sempre, as palavras do presidente Lula reverberam, ganham magnitude, muita importância em todo o País e em alguns casos até mesmo no exterior.

Mais recentemente, discursando no Palácio do Planalto ao comentar sua vitória nas eleições, Lula disse que o ex-presidente Bolsonaro “tomou surra”. Sim, é verdade, o presidente venceu as eleições, mas a expressão não me parece a mais adequada para se reportar à derrota do seu adversário, que aliás, teve um comportamento político deplorável logo após o resultado das urnas. As duas falas do presidente aqui citadas não somam em nada, não acenam para um possível entendimento ou, quando menos, que motive um arrefecimento dos ânimos pós-eleições. Isto, sem dúvida, seria de grande valia para a governança do País. O presidente Lula tem uma inteligência política das mais aguçadas, é muito experiente e sabe perfeitamente que este é o momento de somar, de minimizar o impacto das agressões durante a campanha eleitoral, ou até de mesmo esquecê-las.

Entendo que idealmente seria procurar harmonizar uma situação tensa, e que lamentavelmente perdura, mesmo após o resultado das eleições há quase dois meses. Governança e harmonia combinam muito bem, precisamos chegar a este estágio. Podemos todos nós erguer a bandeira branca e esperar que os parlamentares no Congresso Nacional também o façam. Vale lembrar que o Poder Legislativo é de fundamental importância para a harmonia de uma boa governança. O temporal que causou grande tragédia em São Sebastião, litoral de São Paulo, fez com que os litígios político-partidários fossem deixados de lado momentaneamente. O presidente Lula (PT), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB) uniram forças para cumprir com suas obrigações e socorrer a população da cidade devastada. Esta união é um caso excepcional mas, se praticada em situações normais, pode minorar as distâncias político-ideológicas abissais no cotidiano da administração do Estado. Enquanto existir este clima de beligerância que assola a política brasileira, é evidente que nosso presidente terá muitas dificuldades para governar o País.

Não é um clima ruim apenas entre o eleitor de Lula e o eleitor de Bolsonaro. Ele também reverbera dentro do Congresso Nacional e a situação, portanto, não é muito diferente. Lá, o jogo político é muito mais pesado e os partidários de Bolsonaro podem, com isso, potencializar sua má vontade em futuras votações de projetos do governo. Interesses sutilmente ocultos, nesse momento, podem interferir em decisões importantes. O suficiente, com certeza, para desfigurar o excelente projeto de recuperação do nosso país, tão bem elaborado pelo presidente e sua equipe, e apresentado ao povo brasileiro durante a campanha política.

Após a vitória nas urnas, deveria desaparecer esta cisão entre o eleitor de Lula e o de Bolsonaro. É evidente que o presidente sabe disso, melhor que seus próprios eleitores e melhor do que ninguém. Não há que serem tratados de formas diferentes. Quando o presidente Lula em seu discurso falou “nós temos que tirar bolsonaristas que estão lá há tempo”, o fez no calor da hora, na empolgação e na emoção de estar reiterando ao povo baiano e, por extensão, a todos os brasileiros, que está cumprindo mais uma de suas promessas de campanha. No entanto, quando notícias como esta ganham destaque midiático, a ressonância é sempre negativa; é como se todos os bolsonaristas fossem predadores como vimos em 8 de janeiro em Brasília. Não é bem assim. Uma coisa são os vândalos aloprados e predadores, outra coisa é o eleitor que escolhe votar em seu candidato.

Por outro lado, é perfeitamente legítimo que os chamados cargos de confiança tenham realmente alterações de pessoal. É natural que o presidente reúna, em seu governo, profissionais da sua confiança, justamente para que seu sistema de trabalho se torne seguro e otimizado o máximo possível. Os “aparelhos ideológicos de Estado” (a expressão é do filósofo argelino Louis Althusser) devem sempre atender às necessidades do Estado e da sociedade. Todos nós sabemos que em mudanças de governo, seja no âmbito municipal, estadual ou federal, sempre ocorrem esses procedimentos. Em outros termos, temos aqui o “ajuste da máquina”, algo legítimo, para que ela funcione da melhor forma possível, como deseja o chefe do Poder Executivo.

Ao presidente Lula, desejamos que ele realize uma excelente gestão. Liderança e competência administrativa para exercer o mais alto cargo do Poder Executivo ele as tem. No plano internacional, goza comprovadamente de um prestígio muito grande e isso o ajudará com certeza, ao longo desse percurso até 2026. Seus oito anos anteriores de mandato o credenciam muito bem, e lhe deram uma experiência que nos tranquiliza a todos. Temos grande chance de recuperar o tão abalado prestígio internacional do país e viver um Brasil sem cloroquina, sem multidões armadas, sem a lenta, mas contínua eliminação das populações indígenas, sem o estímulo à devastação criminosa do meio ambiente, entre outras atrocidades, que com certeza desaparecerão do País. Precisamos nos redimir dessas tragédias. Boa sorte, presidente, não apenas seus eleitores estarão torcendo pelo sucesso da sua governança, mas também todos os eleitores e a população brasileira, tenha certeza.

(*) Waldenyr Caldas é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

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