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Intervenção militar: entre a esquizofrenia e a cidadania

Por Antonio Jorge de Abreu (*) | 13/11/2017 13:14

O regime militar que o Brasil conheceu a partir de 1964 e que duraria 21 anos – tendo seu ápice com a publicação do AI-5, em que o presidente da república, a sua escolha, podia cassar direitos políticos do cidadão, sem direito a hábeas-corpus, fechar a câmara ou o congresso nacional e também nomear representantes para qualquer função do poder executivo – foi estigmatizado como o período em que a censura predominou para manter encobertos os traços
de corrupção dentro do regime. Por sua vez, as Forças Armadas construiu um aparelho repressor impedido de coexistir com um sistema político constitucional, cuja essência repressiva tomou corpo na identidade que o Estado revelava: a tortura. Sem as garantias de direitos constitucionais, de democracia e de liberdade a ditadura foi o melhor caminho para a corrupção que, em um misto de censura e impunidade, dura até hoje.

Mas eis que uma pequena parcela da população brasileira parece não saber disso, ou finge não saber. Usam a internet, e até mesmo as ruas, em um ritmo de ilusão e neurose, para pedir “intervenção militar constitucional”, e não percebem que uma intervenção desse tipo na verdade é inconstitucional. Ignoram que sem hierarquia e disciplina as Forças Armadas deixam de existir. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica sabem disso; sabem que, conforme
o artigo 142 da Constituição, eles “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”, e somente fariam esse tipo de intervenção com a autorização deste último.

Mesmo essa chamada sendo assistida com total desinteresse pelas Forças Armadas, o projeto, que está presente também em Campo Grande, insiste em clamar às portas dos quartéis pela volta dos militares para implantarem novamente o regime que no passado foi escancaradamente ditatorial.

Esse mesmo regime que desde o seu início suspendeu a integridade constitucional, cassou mandatos eletivos, suspendeu direitos políticos de cidadãos e anulou o direito à estabilidade dos servidores públicos militares e civis, foi explicado em 1981 pelo próprio Ernesto Geisel como não sendo uma revolução, mas pelo contrário, um movimento apenas para derrubar João Goulart: “Foi um movimento contra, e não por uma coisa”, dizia o general que admitia
que “nem a subversão e nem a corrupção acabam”. Pelo visto, aqueles que fazem apologia a regimes ditatoriais desconhecem ou não querem fazer alusão às condutas de violência ecorrupção que se revelam quando entidades militares assumem o poder do Estado, ou mesmo se mostram desatentos quanto ao abuso de autoridade perpetrado pelos órgãos ditatoriais que recentemente a Comissão Nacional da Verdade revelou. Ir às ruas pedir a intervenção militar no próximo dia 15 de novembro alegando combater a corrupção é desconhecer as reais artimanhas e interesses da política por detrás de um golpe.

Neste caso, os motivos para o golpe de 64 foram muito além do que as desculpas acessórias de corrupção, greves e inflação. Para o grupo que se instalou no poder, decidido a impor obstáculos à participação política, estava em jogo, como importância maior, o medo de um comunismo que não existia – produto da Guerra Fria –, a indisciplina militar recorrente nas Forças Armadas, o sentimento de revanche que ainda perdurava da primeira tentativa de golpe em 1961, a preocupação com a camada do trabalhismo, comandada por Leonel Brizola, difusor da movimentação popular. Esse movimento político-militar, baseado em uma utopia ditatorial, fundava-se na ideia autoritária de que os militares, em questão de patriotismo, moral e compreensão dos fatos reais, eram superiores aos civis, para eles o povo não sabia definir seus governantes. Assumiam, portanto, a função de escolher e liderar os rumos da sociedade. Cabe destacar aqui que nem todos os militares apoiaram o golpe, a partir de abril de 1964, quando os tanques dirigiam-se para as ruas, o país mergulhava em um ambiente em que existia simultaneamente a obsessão delirante pela ordem e a anarquia militar. 

Mas então o que faz com que essas pessoas, cidadãos comuns, trabalhadores, ditos escolarizados, saírem de suas casas a pedirem a volta de um governo de tempos tão tenebrosos? É compreensivo a revolta pela atual crise política e moral que presenciamos, mas a experiência e a história demonstram que a corrupção e a impunidade são filhas de governos ditatoriais. Seria o caso, então, de amnésia ou desconhecimento? Não sabem eles que a democracia ainda é o melhor instrumento mantenedor da transparência nos meios administrativos e políticos, que permite uma imprensa livre para investigar a corrupção e um judiciário desimpedido para puni-la? Não entendem que uma ditadura nos tornaria isolados política e economicamente do mundo? Neste caso, no mundo contemporâneo estamos longe da velha discussão sobre socialismo versus capitalismo, o que prevalece é a proposta de democracia e liberdade. Mas, vendo cartazes em redes sociais com dizeres de que a repressão deveria ter matado ao invés de torturar, nos faz pensar que talvez nessas linhas esteja estampado o reflexo do fascismo luxuriante das elites que, esquizofrenicamente, suplicam por super-heróis, deuses e anjos para protegê-las do inimigo imaginário. Nessa imaginação pueril, pensam que o Facebook irá salva-las, e Deus, vendo isso, irá mandar o salvador, convertido na figura das Forças Armadas, que imaginam ser bom e justo. 

A despeito da experiência, principalmente do AI-5, sobre o golpe iniciado em 1964, muito ainda pode ser compreendido e estudado. Sabemos, por conseguinte, que qualquer sistema autoritário irá inverter os valores sociais, e, neste caso, o cidadão passa a servir ao Estado e não ao contrário, o que já denota um preâmbulo para a corrupção. O cenário atual do país é diferente do que existia em 64, não é propício, não justifica e nem tem interesse de uma intervenção por parte das Forças Armadas. Porém, o regime militar pelo qual o Brasil passou não é mera coisa do passado, por isso deve sempre ser revisto e repensado, pois é revendo a história que construímos nosso destino, e este contínuo rever não é somente aprendizado, é também exercício de cidadania.

(*)Antonio Jorge de Abreu é servidor público municipal, formado em História e especialista em Filosofia e Sociologia.

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