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Intolerância religiosa e a resistência Malê

Por Francirosy Campos Barbosa (*) | 29/01/2025 13:30

Dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil, em memória de Mãe Gilda de Ogum, uma sacerdotisa do Candomblé que faleceu em decorrência de ataques de intolerância religiosa. A data foi oficializada pela Lei nº 11.635/2007. Infelizmente, no Brasil, são necessárias muitas ações contra as violências cometidas, principalmente contra as religiões de matriz africana. A lei promove a conscientização sobre o direito à liberdade religiosa, no entanto, ano após ano precisamos reafirmar, cada vez mais, esse enfrentamento. O Brasil, um país laico, destaca em sua Constituição Federal de 1988 o combate a ações discriminatórias.

Essa discussão não é recente. Na Carta Magna aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte e promulgada em 18 de setembro de 1946, os parágrafos 7º e 8º do artigo 141 apresentam os direitos propostos por Jorge Amado, eleito pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB-SP):

§ 7º – É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo os que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.
§ 8º – Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica, ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Cabe dizer que esses dispositivos garantiram a proteção à liberdade de consciência e de crença, assegurando o direito ao livre exercício dos cultos religiosos. Entre 1946 e 1948, durante seu mandato parlamentar, Jorge Amado apresentou a emenda 3.218, com o objetivo de resguardar o direito ao exercício das crenças religiosas no Brasil. Apesar de enfrentar oposição dentro de seu próprio partido, que enxergava a religiosidade como um instrumento de manipulação, a emenda foi aprovada e incorporada à Constituição de 1946.

Entretanto, nos dias de hoje, ainda precisamos de um enfrentamento maior sobre as violações dos direitos de pessoas religiosas em nosso país. São necessários diversos enfrentamentos cotidianos:

1) o racismo religioso, principalmente quando se trata das vestimentas religiosas, espaços de culto e ataques pessoais;
2) o enfrentamento em relação à desinformação sobre os fundamentos religiosos, sejam eles das matrizes africanas, dos muçulmanos, dos evangélicos, etc.;
3) o enfrentamento ao crescimento do discurso de ódio, presenciado há décadas e que tem recebido pouca atenção até o momento.

Com relação ao islam, o Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, já realizou, sob minha coordenação, dois relatórios sobre islamofobia, apontando esse tipo de violência.

A religiosidade islâmica no Brasil cruza-se fortemente com a resistência Malê. A Revolta de 1835 foi marcada por elementos cruciais de resistência. No período colonial, determinados grupos religiosos de matriz africana (seja candomblé, islam) estavam impedidos de se organizarem ou de professar sua fé. Esses negros escravizados eram acusados de curandeirismo e outras práticas que divergiam com o interesse dos colonizadores. Os muçulmanos, por sua vez, eram alfabetizados e traziam de sua cultura religiosa suas orações, a leitura do alcorão e o sentimento contra a escravidão que aprendiam com a religião professada.

No Brasil, o islam é frequentemente associado à religião dos “árabes”. Contudo, é fundamental destacar que, embora a religião tenha tido sua origem em Meca e posteriormente recebido revelações em Medina, ambas localizadas na atual Arábia Saudita, sua presença e expansão transcenderam amplamente as fronteiras árabes. Hoje, o islam possui uma forte predominância no continente asiático, seguido pelo continente africano. Curiosamente, os países árabes representam apenas cerca de 15% da população muçulmana mundial, o que reflete a diversidade cultural e geográfica dessa tradição religiosa.

Quando estudamos os processos de reversão ao islam no Brasil, nos deparamos com revelações dessa aproximação advindas dos discursos de Malcolm X, ativista afro-americano também revertido ao islam, que enfrentava com veemência o racismo institucionalizado, tornando-se um símbolo da luta contra a opressão racial. Além das citações recorrentes ao nome de Malcolm X, temos a referência à resistência Malê, às histórias do líder Lucutan, um africano de etnia Nagô (Iorubá) escravizado, muçulmano e alfabetizado em árabe, o que o colocava em posição de liderança intelectual e espiritual entre os participantes da revolta. Esses e outros exemplos revelam a força de homens e mulheres negras escravizadas que fizeram a história dos muçulmanos no Brasil como mais uma forma de resistência. No entanto, assim como qualquer outra história de negros neste país, o apagamento histórico revela não só a discriminação racial, mas também religiosa.

Durante os anos de 2011 a 2015, pesquisei a história Malê em Salvador e produzi o documentário Allah, Oxalá na Trilha Malê. O que mais me chamou a atenção na produção desse material foi que uma ebomi de Candomblé, Mãe Cici, conhecia mais sobre o islam do que muitos muçulmanos. Isso porque ela conhecia profundamente a história dos negros escravizados e, entre eles, os muçulmanos tinham grande destaque. Essas histórias foram aprendidas com Pai Fatumbi, como ela se refere ao antropólogo Pierre Verger. Se antes de 2015 a história Malê nas comunidades islâmicas estava mais presente nas falas de revertidos pretos, hoje se vê o destaque à importância dessa história para se contar a história de muçulmanos no Brasil.

Nosso atual enfrentamento é acabar, sobretudo, com a discriminação do uso do véu em qualquer espaço onde as mulheres escolham estar, assim como combater o racismo religioso. A islamofobia é uma realidade, mas sabemos que o desconhecimento sobre quem são os muçulmanos, como vivem e no que acreditam ainda é algo que precisamos esclarecer cotidianamente. Por isso, é fundamental a existência de um grupo de pesquisa como o Gracias, sempre atento à diversidade de religiosidades e ao enfrentamento de qualquer discurso de ódio.

No Brasil, não deveria haver espaço para a intolerância religiosa. Enquanto essa realidade persistir, nossa resistência será ainda mais forte e proporcional à luta necessária.

(*) Francirosy Campos Barbosa é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo).

 

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