'Lei Uber' para motoristas de aplicativos: e os condutores de táxis?
A pretexto do envio de um projeto de lei ao Congresso, já apelidado “Projeto de Lei do Uber”, inúmeras publicações tratam do tema de forma segmentada. Como se essa nova legislação fosse resolver alguma coisa isoladamente. Em especial dar dignidade e proteção à categoria dos motoristas de veículos dos aplicativos.
Os números desses aplicativos de transporte são astronômicos. Apenas a Uber possui algo em torno de 1 milhão de condutores e aproximadamente 30 milhões de usuários. Fácil compreender como essas plataformas afetam a vida tanto de milhares de condutores, quanto afetam a mobilidade urbana de milhões de habitantes das cidades.
Qualquer legislação que vise a regular essa realidade de forma a tratar do serviço, sem se ocupar da qualidade de vida dos condutores, ou esquecendo dos impactos sobre a mobilidade urbana, não trará efeitos a longo prazo. Em especial, não se pode deixar de lado a realidade dos táxis: particularmente dos chamados “condutores auxiliares”, explorados há décadas.
A exploração dos “condutores auxiliares”/”defensores de táxi” - O projeto de lei em discussão debate a valorização dos “motoristas de aplicativos”. Mas a categoria que há décadas é explorada até não mais poder continua deixada ao desamparo. Os chamados “condutores auxiliares”, também conhecidos como “defensores de táxi”, são os profissionais que “alugam” uma placa de táxi para exercerem o trabalho. Pasmem! Há cidades nas quais o mesmo dono de uma licença aluga o veículo para duas pessoas diferentes. Uma que trabalhe 12 horas do dia e outras que trabalhe nas outras 12 horas.
Muitas vezes, quem está de fato trabalhando no táxi não é o “dono da licença”. O dono da licença está alugando sua permissão para que um condutor auxiliar trabalhe, explorando-o numa relação na qual o condutor não tem a menor garantia. É bom frisar: o condutor auxiliar é devidamente registrado nas prefeituras, preenchendo categoricamente todas as exigências documentais e de registro do dono da placa: só não tem “a placa”.
Perversamente as leis locais incentivam esse mercado quando ainda exigem licitação, ou fixam números-limite de placas. Quanto mais difícil “poder ter uma licença própria” mais caro será um aluguel, e mais aberto à exploração estará aquele motorista auxiliar. A leis locais se convertem em cúmplices da exploração humana.
Onde ficam os táxis nessa equação? - As plataformas de serviços de transporte de pessoas entraram numa fenda aberta no serviço de táxi, o que contou com a conivência aviltante dos municípios.
Faço sempre uma leitura muito particular dessa realidade do sucesso das plataformas de serviços de transporte, não sob a perspectiva do preço ou da facilidade de chamar um veículo por uma aplicação no celular. A leitura que faço é de outro tipo. Busco ver como a ineficiência do sistema de táxis facilitou o sucesso destes aplicativos muito além da noção de “preço”. Uma ineficiência dos táxis que foi alimentada até a obesidade mórbida por uma ordinária omissão regulatória municipal, ou, em alguns casos, contando com regras regulatórias protetivas da ineficiência e incentivadoras de ilícitos. Novamente, são leis-cúmplices. Talvez por razões não republicanas, inconfessáveis.
Regular serviços de transporte deve ser com vistas à qualidade de vida dos condutores, e com vistas ao impacto positivo sobre a mobilidade urbana. Por isso, a regulação dos serviços de táxi não pode ser deixada de lado, especialmente a proteção dos condutores auxiliares que, salvo melhor juízo, deveriam ter suas próprias licenças, livrando-os do vínculo exploratório.
Táxi: de serviço público a serviço de interesse econômico geral - O serviço de transporte de pessoas nas cidades é tão antigo quanto a civilização. Transportar pessoas numa cidade teve como o primeiro desses serviços o riquexó, um carro de duas rodas puxado por um só homem.
Em 1605 as Hackney — carruagens inglesas — foram as primeiras situações que demandaram intervenção normativa como compreendemos nos dias atuais. Em Stuttgart, apareceram os primeiros táxis motorizados, por volta de 1896.
O táxi como conhecido hoje nasce com a aplicação dessas tarifas via taxímetros: em 1897, surge a primeira empresa a utilizar o taxímetro. No Brasil, o serviço já ingressa com a modalidade tarifada por taxímetro.
Cabe ao poder público local estabelecer os requisitos exigidos para tal licenciamento. A simples previsão de critérios não converte o serviço em público pois, como referido, podem existir limites proporcionais de acesso em casos de serviços de interesse econômico geral.
Todavia, reafirmando, é imprópria a ideia de restrição de competição, seja a licitação ou o número-limite de licenças no caso dos táxis, pois não agregam valor ao serviço. As exigências de “limite de licenças” ou “licitação” somente servem para retroalimentar um mercado espúrio de venda placas ou de exploração dos condutores auxiliares.
A exigência de licitação não agrega qualquer valor ao serviço em si apenas criando um oligopólio. Um oligopólio, não regulado, que criou a brecha da ineficiência que fez florescer as aplicações de transporte de pessoas.
Essa ineficiência reguladora alimenta um ambiente espúrio da exploração humana, afrontando a Constituição, especialmente o artigo 1º Incisos III e IV, a saber, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. No mesmo sentido viola o artigo 170, incisos IV e V, com os impactos sobre a livre concorrência e a defesa do consumidor.
Onde ficam os municípios? - Uma administração municipal pode muito bem fiscalizar os serviços de transporte, disto não se tem dúvida. Por mais empedernidos que sejam os defensores da liberdade de atividade privada, é certo que uma administração municipal na área de transporte individual de passageiros em perímetro urbano estará diante da legislação do interesse local, inserida no artigo 30 da Constituição.
O que é preciso? Que os municípios parem de fomentar as “máfias de placas” com suas leis anacrônicas. As leis municipais, a pretexto de regulação do serviço de táxi, de fato criam uma proteção para um mercado paralelo de vendas ou locações de placas de táxi. O que fomenta uma indignidade: a exploração do condutor auxiliar, aquele que efetivamente trabalha.
Para quem não conhece o sistema, é muito comum nas leis municipais:
- Fixação de números clausus — ou número limite — de licenças para táxi. Isso gera o aumento do “preço” de cada placa, sendo o principal fomentador da “máfia de placas”, seja na modalidade “compra e venda”, seja na modalidade “locação”. Isso gera o que o ministro Luiz Fux, no julgamento da ADI 5337, denominou como sendo o fomento de incentivos perversos.
- Exigência de licitação. É o problema sinônimo do anterior. Sendo o número limitado, as municipalidades exigem licitação. Muitas vezes por “sorteio”. Por exemplo o julgado no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1.002.310 SC tendo como relator o ministro Gilmar Mendes reconheceu ser inconstitucional a exigência de licitação.
As aberrações da alienabilidade e da licitação já foram derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal nos processos acima referidos. Todavia, são mantidas nas leis de 99% das municipalidades.
Onde ficam o Ministério Público e tribunais de contas? - Tratando-se de legislação municipal, existe uma falha na atuação dos órgãos de controle externo, especialmente os Ministério Públicos e tribunais de contas. Os primeiros poderiam questionar essas regras anacrônicas, violadoras da dignidade humana, pela via do controle de constitucionalidade perante os tribunais de Justiça. Os segundos, verificar nas suas inspeções, se cada municipalidade detém e aplica tais leis, e verificar se há ou não a presença do que o ministro Fux denominou de “incentivos perversos”, que podem estar presentes por vias não republicanas.
Sugestões a título de conclusão - Todos os ambientes de exercício profissional — sejam os táxis ou os aplicativos de transporte — têm interesses que extrapolam o interesse da empresa ou do executor do serviço. Impactam, por exemplo, na dignidade do profissional que trabalha. Lado outro, impactam na noção de mobilidade urbana. Apenas algumas questões, que demonstram como a regulação atual é deficitária, pois feita de forma “isolada”:
- Pode um aplicativo tolerar o bloqueio de atendimento para se criar artificiosamente um preço variável ou dinâmico na plataforma? Pode ou até mesmo deve a lei criar alguma sanção?
- Pode um aplicativo impedir o cadastro de um taxista? Afinal, se o aplicativo se louva da liberdade empreendedora, qual a razão para impedir o cadastro de um táxi? Há vedações nas regras de alguns aplicativos. Haveria tamanha liberdade de restrição?
- Como controlar, por exemplo, eventual negativa de atendimento a pessoas com deficiência? A alegação de haver “táxi especial” ou “veículo especial” na plataforma de aplicativos, é suficiente para negar o atendimento? Há casos de negativa até para pessoas que usam muletas. Não estou sequer referindo ao armazenamento de cadeiras de rodas, mas a situações bem mais simples.
- No mês de dezembro, o táxi anda em “bandeira 2”. Uma tradição para efeito de uma espécie de 13º. Poderia ser fixado uma tarifa diferenciada nas aplicações de transporte com essa finalidade? Como controlar a destinação integral aos condutores? Pois não deveria remunerar a plataforma.
- Onde houver faixas de trânsito preferencial, um veículo de aplicativo, devidamente identificado e em exercício do transporte de pessoas, não deveria ter o mesmo benefício de uso da faixa preferencial que os táxis?
Pois bem, são breves considerações para levantar uma necessidade de atenção ao fenômeno do transporte urbano de pessoas, não de forma isolada. Não é só uma plataforma de transporte por internet que seria, em tese, capaz de violar a dignidade do trabalho humano.
Os condutores auxiliares estão aí há décadas sendo lesivamente explorados. E não se pode negar a tais plataformas alguns privilégios que são próprios dos táxis, especialmente os ligados à mobilidade urbana.
Ainda que o novo projeto de lei Uber seja um passo adiante no debate a respeito das condições de trabalho dos motoristas de aplicativos, é essencial uma visão mais holística de todas essas realidades. Não se podem manter os milhares de condutores auxiliares de táxi ao desabrigo, quando poderiam ter suas licenças próprias. Essa visão do quadro mais amplo, ainda falta no Brasil.
(*) Luiz Henrique Antunes Alochio é procurador municipal em Vitória (ES), doutor em Direito pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
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