Letramento lúdico na infância e alfabetização: desatando nós da desigualdade
Para focalizar a importância do desenvolvimento do letramento emergente lúdico na infância, desde a Educação Infantil, em que serão combinadas de forma interativa e criativa as atividades de oralidade, leitura e escrita, apresentaremos dados que nos permitem refletir sobre o enfrentamento de nós da desigualdade social.
Será preciso, inicialmente, tratarmos de “números”, embora o foco deste texto esteja voltado às “palavras” (linguagem verbal) e a outras linguagens não verbais. Os “números” em questão, que muito nos preocupam, constituem um desafio para toda a sociedade brasileira.
Ao participarmos da análise dos dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil — 5ª edição, promovida pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, publicada pela Editora Sextante em 2021, pudemos dimensionar o tamanho do desafio. Zoara Failla, organizadora da pesquisa, ressalta: “Nenhuma sociedade pode melhorar seu patamar de desenvolvimento humano, reduzir desigualdades sociais e construir uma democracia sólida se quase metade de sua população não é leitora”.
Isso significa que o desenvolvimento social e econômico do País, a produtividade tão necessária, encontra entraves resultantes das desigualdades de oportunidades entre os atores sociais. O levantamento dos dados dessa pesquisa ocorreu em 2019 e foi realizado com 8.076 pessoas de 5 a 70 anos ou mais, abrangendo todos os Estados do Brasil, indicando que 48% dos brasileiros são considerados não leitores. É possível que um número significativo desses sujeitos seja composto de mães/pais de crianças, as quais não teriam, portanto, acesso a um letramento emergente lúdico em suas casas.
Outra pesquisa, o PISA, que estabelece um ranking de proficiência em leitura entre diversos países, indicou que o Brasil ocupou, na edição de 2018, a posição 57ª no total de 77 países. Por meio desse teste, pôde-se constatar que mais de 50% dos estudantes brasileiros, jovens com 15 anos que não atingiram o nível básico em leitura, ainda têm problemas de compreensão e não são leitores fluentes. Teremos de reavaliar as propostas educacionais, desde a Educação Infantil, para viabilizar avanços nas próximas gerações.
Recentemente, tomamos conhecimento dos resultados do PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study), uma avaliação realizada em 2021 por uma cooperativa internacional de instituições de pesquisa que, nesta quinta edição, tratou os dados de 57 países e oito “nações” (ou regiões, estados e províncias). O objetivo era avaliar a capacidade de leitura e compreensão de textos por alunos do 4º ano do ensino fundamental (9 a 10 anos). Nessa pesquisa, o Brasil, que pela primeira vez participou, ficou entre os cinco últimos colocados.
Tendo em vista os dados do PISA, que avalia a compreensão leitora dos jovens, e do PIRLS, que avalia a das crianças, há fortes evidências de que o Brasil precisa trilhar um caminho mais efetivo para tratar o problema em questão.
A Suécia, que já havia participado de outros ranqueamentos do PIRLS e que neste último, de 2021, verificou uma queda em sua posição com relação à de 2016, colocou em discussão o excesso de uso dos computadores nas escolas. Há informes de que o governo sueco destinará 150 milhões de euros para reintroduzir os livros de textos nas aulas.
É possível que o atual governo do Estado de São Paulo, ao não aderir ao PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), desconheça ou desconsidere essa decisão que a Suécia tomou a partir de inúmeros dados analisados. Foram recusados pelo atual governo do Estado de São Paulo os livros didáticos impressos a partir do 6º ano do Ensino Fundamental. Após repercussão negativa, tendo em vista evidências de que muitos alunos não dispõem de recursos tecnológicos em suas casas, o governo do Estado São Paulo informou que vai imprimir e encadernar o livro digital escolhido pela secretaria. Em sequência, houve uma reviravolta, e os livros didáticos do PNLD terão de ser requisitados pelo governo do Estado de São Paulo.
Em função de todos os dados mencionados, desde o início deste texto, e de inúmeros problemas que têm ocorrido nas escolas, como violência, bullying, uso indevido de redes sociais, entre outras temáticas, foi formado um grupo de trabalho na Faculdade de Educação (FE) da USP — GT Observatório da Educação —, coordenado pela professora Carlota Boto, diretora dessa unidade da USP.
Desse GT participam vários professores dos três departamentos da FE-USP, professores da Escola de Aplicação da FE-USP e pós-graduandos que desenvolvem pesquisas, referentes à Escola Básica e à formação de professores e professoras.
O grupo tem se reunido para discutir os problemas mais prementes e uma primeira live foi organizada, sobre Violências na escola: complexidade e desafios, com a participação do professor Daniel Cara, da FE-USP, e do professor Edisson Cuervo Montoya, da Universidad del Valle. Essa live, que aconteceu em 14 de abril de 2023, foi mediada pela professora Lisbeth Soares.
Mediada por mim, uma segunda live ocorreu em 30 de maio de 2023, sobre Letramento emergente e alfabetização. Participaram a professora Isabel Cristina da Silva Frade, da Universidade Federal de Minas Gerais, e a professora Fabiana Andréa Dias Jacobik, da Escola de Aplicação da FE-USP. Por meio dos inúmeros participantes no chat, verificamos que a temática provocou a reflexão de educadores de diversas áreas do conhecimento, em função das questões propostas no momento dos debates.
Sobre a temática em questão, na edição de 2 de fevereiro de 2023 do Jornal da USP, Carlota Boto publicou o artigo Magda Soares e o processo de alfabetizar letrando. Nesse texto, ressalta que “a educadora pensava o desenvolvimento de uma sociedade letrada como forma de criar uma sociedade mais justa, com melhor distribuição de riqueza, onde todas as pessoas pudessem acessar equitativamente os bens culturais”.
Novamente, voltamos aos “números” para focalizar o problema da desigualdade social que tanto afeta as crianças. Desta vez, esses “números” foram extraídos do Censo Escolar de 2022, localizados no site do Inep, no que tange à Educação Infantil. Constatamos que há creches somente para 36,0% das crianças de 0 a 3 anos. Quanto à pré-escola, apesar de constituir etapa de escolaridade obrigatória para crianças de 4 e 5 anos, 91,5% são atendidas. É preciso informar que esses números não se referem à escola de tempo integral, tão necessária para o desenvolvimento de crianças e jovens.
Ao tomar conhecimento das pesquisas desenvolvidas pelo grupo Contextos Integrados de Educação Infantil (CIEI), coordenado pelas docentes da FE-USP Mônica Appezzato Pinazza e Tizuko Morchida Kishimoto, as discussões sobre essas porcentagens têm sido esclarecedoras.
Há inúmeras razões para ressaltarmos a importância das creches em nosso país em desenvolvimento. Elas viabilizam atendimento para as crianças com relação ao brincar, à alimentação, à saúde e, também, quanto ao letramento emergente lúdico. Neste momento, podemos relacionar essas restritas porcentagens de crianças em creche aos “números” mencionados no início deste texto, ou seja, 48% dos brasileiros são considerados não leitores. Certamente, na maioria das famílias em nosso país as crianças não têm acesso a um ambiente letrado.
Na pesquisa referente a Retratos da Leitura no Brasil – 5, pudemos elaborar o capítulo 4, denominado O encantamento das crianças pelos livros e pela leitura nas famílias e nas escolas: letramento emergente e alfabetização. Encantamento, imaginação e ludicidade são três palavras que retratam o envolvimento das crianças pequenas com poesias e histórias — contidas nos livros de arte visual e literatura infantil — que abrirão as portas para um novo universo: a aprendizagem da leitura nos meios impressos e digitais, os biletramentos ou multiletramentos.
As brincadeiras, desde bebês, que envolvem a oralidade (contação de histórias, cantigas, rimas, jogos de palavras, parlendas), a mediação da leitura pelo diálogo, na família e na escola, são atividades que propiciarão as oportunidades iniciais de letramento emergente, nutrindo a memória discursivo-afetiva, preparatórias para que a alfabetização ocorra de modo lúdico e eficaz, sem sofrimento, produzindo encantamento pelas palavras, pela linguagem.
Vale enfatizar, também, que o termo “alfabetização” não está obrigatoriamente relacionado ao ato de escrever. O fato de a criança saber ler/compreender é condição suficiente para considerá-la alfabetizada. De outro modo, seriam necessariamente analfabetas quaisquer pessoas impossibilitadas de escrever (por problemas físicos), mesmo que soubessem ler/compreender. A leitura é um direito de todo cidadão, necessário para a constituição de seres humanos plenos com aptidão para análise, crítica e potencialmente capazes de usar a imaginação, de inovar.
São recorrentes essas afirmações sobre o significado da palavra “leitura” como ação que dignifica o ser humano, possibilita o acesso ao conhecimento e a interação dialógica. No Brasil, entretanto, tendo em vista o objetivo de minimizar as desigualdades sociais, é preciso encontrar caminhos que avancem além da aviltante constatação de que muitas crianças não desfrutam, desde o nascimento, do convívio com fontes letradas.
Procurando compreender como ocorrem os primeiros contatos com a leitura, nos deparamos com o fenômeno intenso da plasticidade cerebral no período compreendido entre 0 e 6 anos, no decorrer do qual inúmeros benefícios envolvem o cérebro que se tornará leitor. Tendo em vista que no livro O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era”, Maryanne Wolf (Editora Contexto, 2019) ressalta que “linguagem e pensamento levantam voo juntos nesse período”, lembramos que o desenvolvimento do letramento emergente requer dedicação/mediação intensiva dos adultos para introduzir, ludicamente, as crianças no universo da leitura.
Cantinho da Leitura, Espaço de Leitura, Sala de Leitura, Brinquedoteca, Biblioteca Escolar, Laboratório de Informática, Sala de Múltiplas Linguagens: essas diversas denominações constituem espaços necessários para que professores/ educadores, potencialmente entusiasmados, possam atuar com bebês e crianças pequenas nas creches e pré-escolas recorrendo aos materiais imprescindíveis para tornar lúdico o letramento emergente.
Fundeb, prefeituras, organizações filantrópicas, empresários, ex-alunos de universidades públicas: as escolas aguardam investimentos para criar esses espaços, contendo livros de arte visual e literatura infantil, brinquedos, jogos contendo letras maiúsculas, entre outros jogos, tintas, lápis de cor, instrumentos musicais e outros equipamentos para os professores e as professoras atuarem com as crianças desde a creche em todos os recantos do Brasil.
Valorizar as condições de trabalho de todos os educadores de crianças e jovens complementará esse quadro. A sociedade brasileira pode e tem todas as condições de preparar um país melhor para as gerações atuais e futuras.
O letramento emergente lúdico na infância, durante o período intenso de plasticidade cerebral dessa fase, viabilizará a alfabetização, portanto estimulando a aprendizagem da leitura e da escrita, o que certamente capacitará nossos jovens também a interagirem com e avaliarem as novas ferramentas de inteligência artificial, em especial o ChatGPT e afins.
No início do Ensino Fundamental, para as crianças que não tiveram a oportunidade de realizar essas atividades na creche e na pré-escola, uma recuperação lúdica do letramento emergente se faz necessária, para que a alfabetização ocorra de forma efetiva, sem sofrimento.
Vale lembrar que esse conjunto de materiais necessários nas escolas de Educação Infantil e de Ensino Fundamental esteja disponível nas bibliotecas das universidades para formação de professores.
Se o letramento emergente lúdico na infância pode promover a igualdade de oportunidades a todas as crianças, constituindo um dos caminhos para que seja possível alfabetizar letrando de forma eficaz, muitos outros nós terão de ser desatados para solucionar o problema da desigualdade social no Brasil.
As pesquisas mencionadas neste texto são importantes ferramentas para a reflexão dos responsáveis por políticas públicas a fim de ampliar com urgência o número vagas em creches e pré-escolas no período de maior plasticidade cerebral das crianças, com todos os recursos necessários para desenvolvimento do letramento emergente lúdico. Além disso, tais pesquisas convocam a sociedade civil a participar desses novos rumos com o intuito de fortalecer a educação de crianças e jovens no Brasil.
(*) Idmea Semeghini-Siqueira é professora da Faculdade de Educação da USP.