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Mobilidades turísticas na pandemia de covid-19: fluxos, fricções e dicotomias

Juliana Carneiro e Thiago Allis (*) | 01/09/2021 08:30

No contexto da pandemia do coronavírus (sars-cov-2), o turismo, por um lado, apareceu como agente disseminador do vírus e, por outro, consagrou-se como algo de que muitos sentem falta, dada a presença no cotidiano de boa parte da sociedade. Esta dicotomia trouxe à tona discussões que há tempos estão à margem dos estudos turísticos: é preciso reconhecer e analisar as mais diversas dimensões das mobilidades turísticas, muito além dos óbvios deslocamentos físicos de corpos.

As mobilidades, mais do que práticas explícitas, podem ser entendidas como lentes para observação do mundo, em que tudo e todos parecem estar sujeitos a múltiplas formas de movimento ou seus contrários – as chamadas imobilidades. E as mobilidades turísticas têm emergido como um campo analítico que contempla e dialoga com múltiplas dimensões das mobilidades (corpos, objetos, imagens, comunicação, ideias), portanto, muito mais amplo do que o imaginário padrão que se tem de turismo.

É urgente chamar atenção para diferentes formas de mobilidades que já aconteciam antes da pandemia, mas que, agora, são potencializadas. Podemos, por exemplo, pensar nas mobilidades imaginativas, com destaque para a grande oferta de tours virtuais e as novas estratégias de comunicação turística realizadas e conduzidas por muitos destinos turísticos. Este último se demonstra instigante e inédito porque, ao mesmo tempo que órgãos de turismo transmitiam a mensagem para que os visitantes ficassem em casa em tempos de confinamento, também promoviam a divulgação de seus atrativos com a exibição de suas paisagens e atividades de lazer disponíveis – para quando fosse possível visitá-los novamente.

Considerando os diferentes enfoques e abordagens dessas comunicações, no geral, há a intenção de que o lugar turístico permaneça no imaginário dos espectadores-turistas. Em outro enfoque, muitas dessas mesmas localidades foram obrigadas a promover restrições de acesso e controle nos limites municipais, através de barreiras sanitárias, como respostas diretas à insistência de acesso de pessoas de fora das localidades durante a pandemia (fluxos turísticos). Assim, a noção de mobilidades aqui se manifesta tanto pelos fluxos de imagens – projetando mobilidades futuras, sob a égide da responsabilidade e dos cuidados exigidos no momento, quanto pela imposição de fricções físicas, direcionadas a grupos pouco sensíveis à urgência de controle de circulação, ávidos por darem vazão ao seu impulso turístico imediato.

Com isso, notamos fluxos e fricções turísticas no contexto pandêmico, ao considerar as mobilidades turísticas em suas mais diversas possibilidades e dimensões. Há mobilidades ocultas coexistindo com um ambiente de privação de certa normalidade móvel, mobilidades imagéticas, comunicacionais, imaginativas, e imobilidades escaradas. Por isso, questiona-se: o turismo realmente parou na pandemia?

Cabe também reforçar que as mobilidades não se manifestam iguais para todos e todas: diversas vivências (i)móveis se apresentam, em primeiro lugar, nas diferenças de acesso e na conectividade parcial (física, simbólica, virtual). Os deslocamentos diferenciais foram potencializados. Pessoas com casas de segunda residência, que possuem documento que comprove residência em uma cidade, entram e saem de carro de maneira livre (porque, no geral, os acessos a ônibus de passeio foram proibidos e mais facilmente controlados). Para essas pessoas, as práticas continuam relativamente iguais, uma vez que podem modular suas identidades de turistas ou de residentes ao sabor das possibilidades, regras e privilégios. Portanto, “mover-se fisicamente ou virtualmente entre lugares pode ser uma fonte de status e poder” (Sheller, Mimi & Urry, John, 2006), diretos que assistem de maneira desigual aos distintos grupos. O caráter fluido de identidades é acionado em situações convenientes, garantindo os privilégios da mobilidade, quando o contexto impõe o controle de circulações.

Todas essas contendas – que a pandemia só fez reforçar – direcionam o debate para a busca de mobilidades (mais) justas, que precisam ser (re)pensadas nas escalas corporal, da rua, urbana ampliada, nacional e planetária. Essa constatação abre espaço para olhares mais atentos aos trabalhadores (inclusive do turismo e áreas afins) que, muitas vezes, precisaram e precisam se arriscar para continuar sobrevivendo.

No momento atual de flexibilização dos rigores do isolamento – a despeito da continuidade da pandemia -, destinos e equipamentos turísticos reabrem e surgem, em profusão, mensagens que normalizam as possibilidades de retomada do setor. Chamadas como “podem vir, estamos com todos os protocolos sanitários para melhor atendê-los” vão se desdobrando, na busca de convencer clientes de que todo o necessário está sendo cumprido para que o turismo volte a ser viável e seguro. Contudo, indaga-se: será que o trabalhador também será protegido? Seus deslocamentos diários de ida e volta do trabalho são seguros? As mobilidades dos trabalhadores do turismo também devem ser consideradas nos estudos e nas políticas de turismo, sobretudo porque existe uma grande dicotomia em relação aos fluxos do turista: o trabalhador não tem a opção do não deslocamento, não cabe ao turista o privilégio da imobilidade.

O artigo científico que serviu de ponto de partida desta matéria foi escrito no segundo semestre de 2020, por isso, conforme novas situações relacionadas à pandemia se processam, é oportuna a revisitação de questões debatidas neste período. Isso porque percebe-se a importância da continuidade das reflexões, ainda que o desafio de tecer considerações durante a pandemia seja muito grande, uma vez que os acontecimentos mudam de maneira significativa. Há que se mobilizar – no sentido de pôr em movimento – o conhecimento também.

Estes são alguns compromissos subjacentes ao novo paradigma das mobilidades: iluminar e debater dinâmicas espaciais ocultas e relações de poder veladas. Por isso a relevância, ainda durante uma pandemia, de pensar as múltiplas representações de turismo e não apenas urgir sua retomada – por vezes de maneira inconsequente – em um futuro que pouco se conhece.

(*) Juliana Carneiro é doutoranda e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP .

(*) Thiago Allis é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

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