Nunca foi sobre coragem
Essa foi a exclamação de acolhimento que mais ouvi, ao me assumir publicamente como uma travesti. Parecia até que havia cometido um crime, tamanha a perplexidade das reações. Talvez, em suas perspectivas, tivesse mesmo. Afinal, para quem olhava de fora, minha vida parecia perfeita: docente da USP antes dos trinta anos, casada com uma mulher maravilhosa e trilhando uma promissora carreira científica. Faltavam apenas os filhos, mas isso era, certamente, uma questão de pouco tempo.“Tem que ter muita coragem para fazer isso!”
Essa quimera improvável de coragem e desperdício denuncia, com uma crueza ímpar, o lugar que a nossa so”cis”edade reserva para as pessoas trans: a margem. Se exaltavam a minha bravura é porque sabiam, pelo menos em parte, do destino cruel que eles mesmos haviam tecido para mim. Se consideravam a minha decisão um desperdício é porque desconheciam o terror que a minha não-vida tinha sido até então. Uma pergunta sempre pairava na inquietude do silêncio que se seguia à afirmação de coragem. Por que alguém escolheria ser travesti no Brasil, o país que mais assassina pessoas trans no mundo, há mais de uma década?
Em um improvável momento de noção, tal questionamento nunca se concretizava em palavras. Mas, por saber que, apesar de invasiva, trata-se de uma dúvida recorrente, respondo-a. Ninguém escolhe ser trans, da mesma forma que ninguém escolhe ser cis. Apenas, normalizamos e normatizamos a cisgeneridade, tornando-a compulsória e, sumariamente, eliminando todas as corpas dissidentes, capazes de expor as inúmeras rachaduras que maculam os alicerces de mármore branco do “cistema”. Consequentemente, muitas vezes somos forçadas a nos escondermos, a postergarmos ao máximo a nossa transição. Trata-se de um subterfúgio que nos permite aproveitar dos privilégios cis para galgar uma posição de pseudossegurança, a partir da qual podemos, enfim, arriscar nos tornarmos nós mesmas. Mesmo assim, é uma aposta arriscada.
Escapei da pista, da violência e da morte. Mas, a que preço? Paguei com os anos da adolescência e do começo da vida adulta que não vivi. Enclausurada em uma prisão sem muros, sobrevivia, vendo a minha juventude definhar, enquanto o meu corpo era desfigurado sob a ação incessante da testosterona. Quanto mais perto eu estava de ter as condições para ser eu mesma, mais distante dela eu ficava. O desespero reinava. Cresceu a ponto de tentar o suicídio e, nessa tentativa falha de pôr fim à minha não-vida, matei quem me impedia de ser eu mesma. Por isso, não consigo ver coragem na minha transição. Foi um ato do mais profundo desespero. Era isso ou morrer.
A perspectiva da morte simplifica tudo. Naturalmente, temia a exclusão e o ostracismo que posteriormente se concretizaram. Não foi fácil lidar com a perda de privilégios. Se antes, lida como um homem cis-hétero branco, tudo podia, agora, como uma travesti lésbica (ainda que branca), tudo me era questionado. Minha voz perdeu seu peso nas reuniões. Meu conhecimento científico perdeu a sua precisão. Vi as colaborações e os convites para seminários definharem. Colegas passaram a me evitar nos corredores, a ponto de mudarem suas trajetórias, apenas para não terem que me cumprimentar. Mesmo com o apoio institucional que tive no processo de retificação de nome e o esforço de alguns colegas em me acolher e me proteger de falas transfóbicas, não consigo me sentir realmente incluída.
A USP ainda está longe de ser um ambiente acolhedor à diversidade e, mais especificamente, a pessoas trans. Somos a única universidade pública no Estado de São Paulo que não tem uma resolução específica para o uso de nome social e para o acesso a espaços segregados por gênero por pessoas trans. Não à toa, são inúmeros os casos de desrespeito ao nome social e relatos de transfobia e agressão em banheiros. Se, protegida pela égide da docência, ainda sofro transfobia e há muito descaso com as minhas denúncias, imagina o que acontece quando a vítima é discente?
A despeito da inexistência de uma política institucional para inclusão e pertencimento de pessoas trans, fico muito feliz em saber que não sou a única docente trans e, mais ainda, ao ver cada vez mais alunes trans ocupando a USP. Diferentemente de quando eu era estudante, hoje, duas décadas depois, existem diversos coletivos LGBTQIAP+ que acolhem a diversidade e lutam por nossos direitos. A discussão sobre o acesso e permanência de pessoas trans na universidade tem crescido e atingido esferas antes impensáveis. Não estamos sozinhes e, aos poucos, vamos criando nossos espaços de resistência. Que nosso desespero por existir nunca mais seja confundido com coragem!
(*) Gabrielle Weber é travesti e professora da Escola de Engenharia de Lorena da USP. Trabalha com sistemas integráveis e com as interfaces entre gênero e sexualidade, é coordenadora do projeto de divulgação científica diversa Mamutes na Ciência (@mamutesnaciencia) e co-coordenadora do projeto Corpas Trans (@corpastransusp).