O direito à Educação e as desigualdades na pandemia
Nos primeiros meses após o fechamento das escolas, houve iniciativas das equipes escolares para a manutenção de vínculos com estudantes, incluindo o envio de atividades pedagógicas pela internet, a distribuição de livros, materiais didáticos impressos e cestas básicas. No mês de maio, foram impostas férias coletivas e, a partir de junho, a adoção de Plataforma Educacional com a oferta de Letramento Digital para cerca de 60 mil professores, além de esforços de cadastramento de aproximadamente 800 mil estudantes, visando ao cumprimento remoto de currículos. Em 27 de agosto, foi anunciado o patrocínio público de internet a fim de possibilitar a conexão gratuita.
A partir dessas iniciativas, a dificuldade de contato com uma parcela de estudantes passou a ser evidenciada, paralelamente à divulgação de pesquisas, como as da Fiocruz, revelando que a disseminação de SARS-COV-2 e de óbitos têm índices maiores entre moradores de periferias urbanas, densamente povoadas, sem garantia de acesso à água tratada, à segurança alimentar e aos serviços de saúde.
Para quem já atuava em escolas públicas, não houve surpresa. Ao longo dos períodos letivos, vários alunos desaparecem. As chuvas, o frio, o racismo, a discriminação de gênero e sexualidade e de pessoas com deficiência, além da circulação de crianças e jovens entre domicílios de parentes e amigos e em abrigos públicos, como apontado por Cláudia Fonseca, produzem ausências. Também há desestímulo e infrequência decorrentes de avaliações negativas de desempenho. E as reprovações levam à defasagem entre idade e série, a partir dos 11 anos, a qual chega a atingir cerca de 70% dos adolescentes entre 15 e 18 anos, de acordo com Pesquisa por Amostra de Domicílio (PNAD – IBGE, 2019). As consequências são a evasão escolar; assim, mais da metade da população adulta brasileira não consegue completar o ensino médio, última etapa da Educação Básica.
De acordo com a PNAD, esses números resultam do desinteresse pelos estudos, da necessidade de ingresso precoce no mercado de trabalho e, no caso das meninas, de responsabilidades domésticas, incluindo o cuidado de irmãos menores. Na escola de ensino fundamental em que atua a primeira autora e que atende a cerca de 600 alunos, é observada de forma recorrente uma gestante a cada período letivo – conforme a UNICEF, 75% das adolescentes que engravidam deixam de frequentar a escola. O quadro é agravado pelas condições precárias de trabalho dos profissionais da educação. O último concurso público para o magistério estadual ocorreu em 2013; desde então, só há contratos temporários e, a partir de 2015, o parcelamento de salários se tornou prática corrente.
O fechamento de escolas para diminuir o contágio pelo SARS-COV-2 foi uma medida necessária para salvar vidas. Entretanto, mesmo sucateada, a escola pública de ensino fundamental, que concentra aproximadamente 80% das matrículas, costuma ser o principal equipamento público nas periferias urbanas. E com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1991) passou a ter um papel central nas redes de proteção à infância e à juventude, devendo acionar o Conselho Tutelar quando observa evidências de negligência, violência e exploração.
A violência, incluindo a doméstica, agravada na quarentena, em um contexto de racismo estrutural, atinge mais as pessoas pretas e pardas, as quais são 77,5% das vítimas de assassinatos, de acordo com o Atlas da Violência 2020, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Diante da complexidade dos problemas, no manifesto citado é proposto que em cada território as comunidades escolares participem de decisões quanto ao momento e à forma de ocupar as escolas. Mas a gestão democrática ainda está em construção e as decisões tomadas costumam ser comunicadas, seguindo o padrão autoritário do poder executivo.
A realização de atividades presenciais impõe a constituição de um Comitê Operacional de Emergência (COE) em cada estabelecimento de ensino, composto por representantes do conselho escolar e por servidores das áreas de alimentação, limpeza e manutenção. Mas as comunidades resistem em constituir o COE e assumir a responsabilidade pela reabertura diante do risco de contaminação em instituições sucateadas.
Antes da pandemia, nem sempre era possível disponibilizar sabão, muitas escolas não contavam com espaços amplos para acolhimento, as salas de aula (des)acomodavam em torno de 30 alunos, com janelas basculantes inadequadas à ventilação dos ambientes. Além disso, a vigilância da entrada, do recreio e da saída e a higienização dos ambientes demandam a existência de pessoal para a efetividade dos protocolos sanitários. E, para quem já está habituada à escola, restam perguntas sobre como manter o distanciamento entre crianças e adolescentes saudosos, angustiados e pouco acostumados com o cumprimento de acordos?
São muitas as necessidades de apoio e todas requerem o diálogo para identificar as prioridades não somente relativas a infraestrutura, equipamentos e materiais de consumo, mas também de assistência social, emocional e psíquica. Além dessas questões relativas à escola também existe a necessidade de uso de transporte coletivo por professores, demais servidores, estudantes e suas famílias, o que expõe ainda mais aos riscos de contágio. Qual o impacto na lotação dos ônibus da retomada das aulas presenciais? Também é problemática a opção por transporte individual, com a queima de combustíveis fósseis, uma das causas da crise climática que vivemos, associada à destruição de ecossistemas, à redução da biodiversidade e à emergência de doenças.
A necessidade da quarentena, além de acelerar aprendizados relativos ao uso pedagógico das Tecnologias Digitais de Informação e de Comunicação, contribuiu para a redução das emissões de gases de efeito estufa com repercussão positiva sobre a biodiversidade do planeta. Embora, no Brasil, nesse mesmo período, tenhamos testemunhado o aumento de desmatamento e queimadas, a liberação do uso de agrotóxicos e a destruição de meios de existência de povos originários e de comunidades quilombolas, restringindo o direito a um ambiente saudável. Assim, a reabertura das instituições educativas também deveria ser planejada de forma sustentável, sendo repensada a distribuição de profissionais e de estudantes entre os estabelecimentos de modo a favorecer os deslocamentos a pé, além de considerar as famílias com mais de um filho na definição de escalas.
A garantia do direito à educação não se resume à volta às aulas em realidades precárias, desiguais e injustas; trata-se de se recriarem as políticas públicas.
A escolarização é central para a formação de sujeitos de direitos, desde que o autoritarismo, a competição, a meritocracia e a intolerância sejam substituídas pelo prazer da construção compartilhada de conhecimentos, pela solidariedade e pelo debate em experiências democráticas de decisão em uma escola cidadã.
(*) Sabrina de Azevedo Reschke é professora do ensino fundamental e Russel Teresinha Dutra da Rosa é professora da Faculdade de Educação da UFRGS