O golpismo ainda não se calou
Conhecer a tradição política da América Latina é fundamental para que possamos construir uma análise mais apurada do que aconteceu no Brasil nos últimos oito anos, e de tudo aquilo que ainda está por vir, deixando claro que o fracasso da tentativa de golpe do dia 08 de janeiro não significa que a crise política que desencadeou esse evento foi, definitivamente, superada. Muito pelo contrário. Os segmentos golpistas ainda estão em pleno funcionamento, com apoio de importantes personagens do cenário político, econômico e midiático ultraconservador brasileiro, demonstrando que as medidas punitivas tomadas pelos poderes da república não foram capazes de desencorajar seus operadores mais exaltados.
Quando nos debruçamos sobre nossa história recente somos capazes de perceber que os golpes de Estado que foram executados nos últimos 60 anos pelos setores mais reacionários da sociedade, foram marcados por processos onde a conjuntura favorável à esse tipo de ação só foi possível a partir de uma aliança que foi sendo articulada cuidadosamente pelos personagens mais destacados do cenário econômico nacional e internacional, demonstrando, claramente, que o apego das nossas elites à democracia sempre foi algo muito relativo.
Quando os interesses dessa elite, tanto econômica quanto política, estão em jogo, sua disposição democrática é deixada de lado e ela abraça, sem muito pudor, a bandeira do golpismo e do reacionarismo, se dispondo a contribuir para a instalação de regimes profundamente autoritários que se demonstrem capazes de garantir que seus privilégios sejam preservados, mesmo que para isso seja necessário adotar posturas que envolvem a violência extrema do Estado contra a sociedade.
O golpe civil militar que derrubou João Goulart e jogou o Brasil numa ditadura por 23 anos, foi uma construção urdida a partir do descontentamento das elites com a segunda gestão de Getúlio Vargas, nos anos 50. Os militares, ligados politicamente à importantes segmentos da sociedade brasileira, estavam dispostos a dar um golpe em 1954, mas não tinham, ainda, o suporte político necessário para executar a ação. A crise foi se arrastando por dez anos, com idas e vindas que expressavam, significativamente, o grau de instabilidade institucional que marca o processo de constituição da nossa cultura política, francamente autoritária e profundamente conservadora e excludente.
Finalmente, dez anos depois, em 1964, diante da possiblidade de um governo disposto a adotar uma gestão voltada para o aprofundamento da democracia e o estabelecimento de um projeto político e econômico centrado no combate a desigualdade e na superação das contradições mais dilacerantes da sociedade brasileira, o que pressupunha desconstruir privilégios e garantir que os setores mais populares tivessem acesso aos espaços de poder, até então monopolizados pela oligarquia agrária, financeira e empresarial, o golpe é dado. O mesmo aconteceu no Chile e no Uruguai em 1973 e na Argentina em 1976.
O importante a ressaltar, aqui, é que todos esses movimentos que resultaram numa conjuntura favorável a uma saída autoritária, foram frutos de uma articulação política que levou um certo tempo para se consubstanciar. Golpes bem sucedidos são frutos de processos marcados por amplas alianças envolvendo os segmentos mais destacados da sociedade, algo que não se constrói da noite para o dia.
No Brasil, historicamente, todos os ataques bem sucedidos ao Estado democrático de direito, foram caracterizados pela construção de alianças envolvendo as principais lideranças econômicas, jurídicas, políticas e midiáticas da sociedade. Golpes de Estado nunca são uma articulação exclusiva e independente dos setores de extrema-direita. É necessário a constituição de uma base social sólida que garanta a esses segmentos o protagonismo necessário para a instalação de um regime caracterizado por uma profunda restrição dos direitos civis e políticos.
A resposta dada pelas autoridades brasileiras ao ataque efetuado pelos extremistas de direita no dia 08 de janeiro foi muito importante e garantiu, por um tempo, a possibilidade de se estabelecer medidas mais consistentes de reestabelecimento da ordem democrática. Mas isso não significa que esses segmentos foram derrotados definitivamente e que suas aspirações autoritárias foram enterradas de vez.
Acredito que a ferida ainda continua aberta, sendo necessário que se pense na constituição de outros mecanismos que envolvam não só os aparatos institucionais tradicionais, mas também os movimentos populares que atuam dentro dos marcos de valorização da democracia e da cidadania. A dinâmica de golpes que caracteriza nossa história política só será interrompida quando se constituir amplo, forte e bem consolidado movimento popular combate a desigualdade e de apoio a socialização dos espaços de poder.
(*) Marcelo Tadeu dos Santos é sociólogo formado pelo Centro Universitário Fundação Santo André.