O princípio da imutabilidade do nome ainda existe?
Pode-se afirmar, com Martha El Debs, que impera hoje “o princípio da definitividade (e não mais da imutabilidade) do nome e com ele consagram-se diversas hipóteses de alteração do nome civil (…). Atendeu-se, pois, a adequação plena do instituto à realidade social”.
Neste breve escrito, buscarei expor o estado da arte do tema “nome civil” no ordenamento jurídico brasileiro, já consideradas as inúmeras alterações promovidas pela lei 14.382/22.
A ideia é que o leitor possa conhecer a evolução da doutrina e da jurisprudência dos tribunais superiores sobre o assunto. Também será feita menção a normas da Corregedoria Nacional de Justiça, bem como da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, que regulam o procedimento extrajudicial de alteração de nome no Registro Civil de Pessoas Naturais.
Ao final da leitura, espero que seja possível a compreensão das hipóteses em que o ordenamento jurídico permite a alteração do nome da pessoa natural, bem como a reflexão sobre a permanência ou não do princípio da imutabilidade no ordenamento jurídico brasileiro.
Concepção tradicional do nome civil: o vigor do princípio da imutabilidade
O Código Civil de 1916 não dispunha sobre o direito ao nome. Clóvis Beviláqua justificava a ausência dessa previsão normativa: “O nome deve ser compreendido como a designação da personalidade. Mas a personalidade, forma pela qual o indivíduo aparece na ordem jurídica, é um complexo de direitos, não é um direito. Da mesma forma, o nome não pode ser um direito, por isso mesmo que designa o núcleo de onde irradiam os direitos”. Essa ideia foi superada há tempos. O nome passou a ser compreendido também como um direito da personalidade. O Código Civil de 2002 tratou expressamente do direito ao nome.
Ainda no século passado, afirmava Orlando Gomes: “Embora o nome seja simplesmente sinal distintivo de cada homem, admite-se ser um direito da personalidade”. O reconhecimento de que o nome era um direito concedia ao indivíduo duas faculdades: usá-lo e defendê-lo. Não era abrangida, porém, a faculdade de alterá-lo a seu bel-prazer.
Destacava o jurista baiano: “A lei pune as alterações do nome não autorizadas porquanto a proteção não se organiza exclusivamente no interesse do indivíduo, mas, também, no uso da sociedade”. No mesmo sentido, destacava Serpa Lopes a natureza bifronte do nome civil: “Não é possível, porém, deixar de considerar que o nome, com o ser um direito, é simultaneamente uma obrigação. Nele colabora um interesse social de maior relevância”.
Antes da promulgação da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), comentando o decreto 4.857/39, Serpa Lopes explicava que o nome era composto de basicamente dois elementos fixos (nome de família – ou apelido, ou patronímico – e prenome), além dos contingentes (títulos, pseudônimos, sobrenomes – que não se confundiam com os nomes de família -, etc.).
Os elementos do nome poderiam ser adquiridos ou alterados de pleno direito (nascimento) ou em razão de um ato jurídico (casamento, adoção, ou ato do próprio interessado mediante requerimento judicial). Interessam-nos sobremaneira os elementos adquiridos ou alterados em razão de ato do próprio interessado mediante requerimento judicial.
Os artigos 70 e 71 do decreto 4.857/39 tinham redação praticamente idêntica à dos artigos 57 e 58 da lei 6.015/73 (antes das alterações a que se submeteram, a serem analisadas adiante). Basicamente, permitiam ao “interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil (…), alterar o nome”; “qualquer alteração posterior do nome, só por exceção e motivadamente será permitida por despacho do Juiz togado”.
Serpa Lopes sustentava “que quando a lei se refere a nome, consigna-o num sentido restrito, sem incluir o prenome, pois este é objeto de uma regulamentação à parte (…). Em segundo lugar, força é convir que essa permissão da lei ao interessado, durante o primeiro ano de sua maioridade, não pode prejudicar o caráter de fixidade do nome patronímico (…). Há mesmo quem considere o princípio da imutabilidade do nome patronímico mais rigoroso do que o inerente ao prenome”.
Para a boa compreensão do pensamento do eminente civilista, é fundamental observar que, a seu ver, sobrenomes não se confundiam com nomes de família (patronímicos ou apelidos). O alerta é necessário porque, atualmente, a doutrina não faz distinção entre nomes de família e sobrenomes, sendo ambos tidos como sinônimos. Para Serpa Lopes, em princípio, os sobrenomes, como elementos contingentes, poderiam ser excepcionalmente alterados; os nomes de família, assim como os prenomes, por serem elementos fixos, não.
Na verdade, porém, o próprio Serpa Lopes admitia hipóteses em que os nomes de família e os prenomes poderiam ser alterados. Assim, pode-se concluir o seguinte: o que ele efetivamente defendia era a existência do princípio da imutabilidade do nome tanto para os elementos fixos quanto para os contingentes. Em relação àqueles, porém, o princípio se aplicaria com maior rigor e intensidade.
(*) Thiago Pagliuca é juiz de Direito do TJ/SP. Mestre e doutor em Direito pela USP, professor do curso popular de formação de Defensoras e Defensores Públicos e de cursos de pós-graduação.
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