Pandemia engasgada
Um engasgo é o que irrompe na abertura desta escrita, visto que, desde que este texto me foi requisitado, sinto dificuldade de torná-lo real mediante a asfixia que a atualidade impõe. Chegamos ao ano de 2021 e a pandemia de covid-19 segue fazendo parte de nossas vidas, alterando nossas rotinas, modificando nossos prazos. Ao mesmo tempo, as horas seguem correndo no relógio; eu completei 30 anos no mês de julho, e o limite que me foi dado para a entrega desse texto está terminando. Este deve ser o terceiro documento de Word que abro, enquanto o jornal aguarda o envio. Faz três dias que soube dessa escrita, mas escrevo arrastada, como se completasse três meses que estou aqui. O cansaço tornou-se corriqueiro; paradoxalmente, as horas aligeiram-se em paralisia. Permaneço. E mesmo se quiser fugir, tudo o que vou acabar encontrando é um estado de esgotamento generalizado. Em cada canto, caos e esperança. O tempo engasga com a angústia e com o desamparo, a respiração é pesada quando se deita na cama e se coloca a cabeça no travesseiro – de plumas e de pedras.
Mais um dia, menos um dia. Tudo é uma questão de perspectiva – alguém poderia nos dizer. Nem sempre, responderia. Às vezes, a questão é silêncio; em outras, excesso. Desde que tudo isso começou, muito já nos foi dito através de textos, artigos publicados, matérias, entrevistas, notícias, consultas médicas, testes rápidos, PCRs, etc. Uma miríade de palavras lançadas outrora, lá no longínquo passado do ano de 2020, que, porém, retornam no agora feito assombração. Daí extraímos as três possibilidades: pelo viés da perspectiva, retorna porque nunca foi embora; pelo viés do silêncio, retorna por negligência; pelo viés do excesso, retorna enquanto vacilo. À espreita, o que retorna são as nossas insuficiências percebidas durante o combate, o que leva o soldado a pensar em desistir da luta muitas e muitas vezes. No momento em que me engasgo, entretanto, só desejo retomar o fôlego e sobreviver.
Um engasgo, assim, é como um possível que guarda a esperança de respirar, apesar daquilo que prende e esgota nosso ar e nossa voz: mesmo pouco, incide ao oxigênio circulando pelos pulmões e que resiste àquilo que se prendeu na garganta. Há muitas palavras presas assim como há muitos silêncios. Decido pelo caminho do meio, do otimismo, e sigo; ser otimista não significa que não se esteja cansado do mês e do outono que, mais uma vez, avistamos no horizonte.
Em março de 2020, fomos bombardeados de advérbios e, entre o muito e o pouco, seguimos vendo muitas pessoas se contaminando e poucos recursos de saúde para curá-las. Muitas mortes, poucas vacinas. Muitas medidas preventivas, pouca responsabilidade. Entre o muito e o pouco, o fato é que temos perdido muito tempo e enfrentado pouco os fantasmas que nos assombram – para tornar esse muito, quiçá, nada.
Há cerca de um ano, encontramo-nos enfiados nessa luta pandêmica: em que momento as palavras se esgotaram? Em qual espaço o tempo foi capaz de escoar tão depressa? Simultaneamente, na ampulheta de nossas sensações, a areia segue passando de um lado a outro, incessantemente, como se nunca findasse a matéria dessa temporalidade que, mais cedo ou mais tarde, nos sufoca em ar e em memória. Rememoro o tempo presente de maneira insuficiente diante do que nos acontece, à medida que as memórias apresentam-se cheias de lacunas, perguntas e incertezas – as quais, tampouco sabemos se algum dia irão se dissolver. Simultaneamente, não podemos vendar os olhos à realidade e, seria no mínimo hipócrita, fingir que não há muita coisa se dissolvendo, instituições se desmantelando, pessoas agonizando em sacrifícios. Em suma: muita promessa, pouco sopro.
Um engasgo chega como o outono outra vez. Vivemos uma espécie de dejá vu (com todos os clichês da palavra), enquanto revolvemos o interminável movimento das folhas se desprendendo das árvores em direção ao chão. À noite tudo parece bem, mas, pela manhã, a folha já não tem mais coloração, espreme-se no limbo, seca e solta-se do galho. Perde a respiração e, assim, perdemos um pouco da nossa. Por isso, escrevo engasgada como uma experiência marcada pelo esgotamento, pela impossibilidade e pelo cansaço.
Gostaria de finalizar esse texto com o “final de feliz” que anunciaria o fim da pandemia, mas as horas ainda são contadas pelo pôr do sol e não há céu no isolamento. Descobri há poucos dias que a palavra isolar vem de insulare e de ínsula, ilha. Estar em uma ilha é experimentar inventar para si um outro modo de vida e, mesmo que queiram nos fazer crer que estamos no deserto da solidão individualista, é importante lembrar que as ilhas, por mais remotas que sejam, ainda acolhem as aves migratórias. Tornam-se lugares de idas e vindas, passagens de ar.
Retomo o fôlego, apesar do esgotamento que pesa sobre o tempo e a realidade que vivemos. Consigo, enfim, chegar ao ponto de ofertar aos leitores e às leitoras uma orientação clínica ao engasgo advindo dessa pandemia que não termina e esta orientação consiste em soprar junto, porque soprar junto é sobreviver ao cansaço que nos faz ofegante, que faz o texto se arrastar. Depois do agora, quem sabe, o ar volte a circular sem interrupções, e um mero gole d’água seja suficiente para aliviar nosso mal-estar. Mas, enquanto isso, devemos aprender a exercitar nossa respiração para não padecermos totalmente engasgados, devemos aprender qualquer “manobra de Heimlich” para soltar o que está preso na garganta: sejam palavras, silêncios e/ ou perspectivas. Porque, mesmo cansados de tudo, inspirar e expirar ainda são as medidas com que a nossa vida é feita e desfeita.
(*) Erica Franceschini é psicóloga, mestra e doutoranda no PPG em Psicologia Social e Institucional. Integra o grupo de pesquisa Políticas do Texto da UFRGS