Pode a arquitetura ser poesia?
Formado em 1926 pela Real Academia de Belas Artes de Veneza, Carlo Scarpa (1906-1978) tenta seu registro em dezembro do mesmo ano, porém se nega a fazer a prova de ordem, imposta pelo governo fascista de Mussolini. Não estava, portanto, habilitado ao exercício da profissão de arquiteto, e seu parceiro de obras foi o arquiteto e engenheiro Carlo Arrigo Rudi Maschietto (Castelvecchio e Banca Popolare di Verona). Scarpa dá aulas no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (IUAV), em colaboração com o catedrático professor Guido Cirilli, sobre composição arquitetônica até 1929.
Com isso, fica conhecido como Professor Scarpa. Com Cirilli, herda a atenção pelos detalhes e a qualidade da materialidade em seus projetos e construções. Sobre a sua relação com o mestre e sua escola, Scarpa relata que descende, por tradição cultural, do monumento a Vittorio Emanuele II em Roma. Foi o melhor aluno do seu professor da Academia, que, por sua vez, tinha sido o melhor aluno do autor daquele emblemático monumento.
Foi no início dos anos 30 que escreveu, em conjunto com os venezianos Aldo Foili, Guido Pelizzari, Renato Renosto e Angelo Scatollin, um artigo de adesão ao Movimento Racionalista. Nessa época, foi professor assistente de Auguste Sezanne, que possuía um curso na IUAV sobre desenhos ornamentais e estudos ‘da vero’. No ano seguinte, assume como titular da cadeira. Em 1934, recebe menção honrosa pelos trabalhos realizados junto à empresa Venini de Murano e conhece o arquiteto vienense Josef Hoffmann, autor de obras como o palácio Stoclet, em Bruxelas, o Sanatório Purkesrdorf e, na área de design de móveis, a cadeira Máquina de Sentar, de 1905.
Scarpa conhecia suas obras como um todo e as apreciava em demasia, chegando ao ponto de influenciar alguns de seus trabalhos, segundo Rainald Franz, curador da mostra “Josef Hoffmann | Carlo Scapa, on the sublime in architecture” na República Tcheca. Scarpa refere-se a Hoffmann como um oriental, sendo ele um bizantino, em clara observação aos estilos de arquitetura de cada um e admirando a modernidade vinda de Viena.
No seu discurso, ele debate sobre a sua base na arquitetura, e percebemos a influência do livro “As pedras de Veneza“, de John Ruskin, no qual os pensamentos derivavam do “ecletismo do considerado pós-moderno“ ao “preciosismo em contraste com o brutalismo”, observando que “todo material é vivo e utilizável, desde que trabalhado de acordo com a sua natureza, utilizada no seu devido lugar, na medida certa, justaposta a outra para que, por simpatia ou contraste, viva em uma relação harmônica com ele”, assim, comunga a “natureza orgânica de seu racionalismo, dentro de sua participação original no movimento moderno”, segundo Marisa Emiliani, em seu texto para o livro “Os desenhos de CS para Castelvecchio”.
Para John Ruskin, “diante da grande lei da natureza que formou essa paisagem selvagem e triste, é preciso lembrar a estranha preparação a que são submetidas as coisas que nenhuma imaginação poderia prever e repetir que a existência e fortuna da nação veneziana se deveram aos obstáculos naturais opostos aos rios e ao mar”. Ele também diz que “não há um só grande pintor, um grande operário de qualquer arte que não descubra, a um simples olhar, mais do que lhe teriam ensinado longas horas de trabalho. Cada homem é dotado para sua obra. Àquele que deve ser um homem de estudo, Deus dá as faculdades de reflexão, de lógica, de dedução; ao artista, Ele dá as faculdades de percepção que experimentam e conservam as sensações. E um desses homens seria incapaz de realizar a obra do outro, até mesmo de compreendê-la”.
Carlo Scarpa era um profissional que estava sempre nas suas obras: o requinte de detalhamento e excelência de execução denotam importante participação do arquiteto junto a fornecedores e empreiteiros, com discussões do interesse de todos para que a qualidade da obra seja percebida e privilegiada.
O questionamento que Scarpa faz em seu discurso “Quando é poesia uma arquitetura e quando não é?” e os referenciais acima – principalmente de Ruskin, delimitando o tema – nos ajudam a separar arquitetura e poesia.
Tornar arquitetura poesia se faz pelo processo de projetar, buscar harmonia entre formas e suas funções – onde o apelo pelo projeto se torna encantador. Isso se perde quando começam os trabalhos burocráticos – escolha de materiais, orçamentos e execução –, tornando-se novamente poesia à medida que o objeto ganha a forma projetada em tamanho real.
Scarpa cita Le Corbusier em seu discurso no qual descobre a liberdade de todos os antigos conceitos estudados em sua graduação. O livro Por uma Arquitetura oportuniza a Scarpa novas teorias e referenciais importantes da arquitetura moderna, saindo do ecletismo que tinha aprendido. Quando Le Corbusier fala sobre a ilusão das plantas e coloca que o exterior é o resultado do interior, que os elementos da arquitetura são luz e sombra, parede e espaço, fica clara a referência a Carlo Scarpa. Suas obras são o reflexo desse conceito: a ilusão das plantas é empregada em diversas obras.
Para Corbusier, “o arquiteto, ordenando formas, realiza uma ordem que é pura criação de seu espírito; pelas formas, afeta intensamente nossos sentidos, provocando emoções plásticas; pelas relações que cria, desperta em nós ressonâncias profundas. Nos dá a medida de uma ordem que sentimos acordar com a ordem do mundo, determina movimentos diversos de nosso espírito e de nossos sentimentos; sentimos, então, a beleza”.
Seguindo essa narrativa poética, Scarpa se define, logo após a sua formatura, como um arquiteto à frente de seu tempo e na observação dos detalhes arquitetônicos. Com sua imersão no mundo do design e em interiores, as possibilidades de criação são as mais “felizes” – como diria Le Corbusier –, pois temos arquitetura tanto “no aparelho telefônico quanto no Parthenon”.
A palavra “harmonia” é citada no discurso de Scarpa, porém Le Corbusier nos diz que a engenharia gera harmonia e que arquitetura é “coisa de emoção plástica” e dita: deve-se “começar pelo começo também e empregar os elementos suscetíveis de atingir os sentidos de satisfazer nossos desejos visuais e dispô-los de tal maneira que sua visão nos afete claramente”. “A construção é para sustentar; a arquitetura é para emocionar.”
Assim, conferirmos a base e a referência de Scarpa em seu discurso. A poesia está na arquitetura. As relações trazidas são “pura criação do espírito”; são, porém, conceitos difíceis de entender. O indivíduo (contratante) não tem acesso a esses conceitos e precisa confiar no arquiteto para que seu projeto vislumbre a sua poesia. Poesia e arte são abstrações, a música é mais literal, facilmente compreendida e exclamada. Devemos pensar a respeito e trazer a discussão para os dias de hoje.
Como fazer poesia em arquitetura com tantas normas e preceitos que temos de entender e reforçar em nossos projetos?
Falando sobre duas regras importantes de Le Corbusier, trago para relacionar duas significativas obras de Scarpa para a explanação e o embasamento do discurso citado e talvez elucidar o meu questionamento acima. Um dos recursos de Le Corbusier que Scarpa se apropria é o uso correto da luz: “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz. Nossos olhos são feitos para ver formas sob a luz…”. Le Corbusier dita uma regra importante que interage beneficamente nas obras de Scarpa. O Museu Cívico di Castelvecchio, em Verona, ao norte da Itália, é uma grande intervenção moderna em que o recurso da iluminação natural é usado à exaustão, proporcionando sensações das fases do dia e seus efeitos nas obras de arte do museu. O resultado surpreende pela qualidade das sombras e pelos efeitos no seu interior. Tudo minimamente pensado e projetado, conforme os inúmeros desenhos que seu acervo possui.
A intervenção moderna percebeu a iluminação natural de uma forma intensa dentro dos ambientes e valorizou cada peça do seu interior. A iluminação artificial proposta por Scarpa mostra sutileza e referência em elementos do próprio castelo, iluminando de forma simples, pontual e em constante movimento quando a iluminação natural sai de cena. O estudo da localização das peças de arte dentro do museu são partes fundamentais do “relacionamento e dinamismo entre edifício, objeto e luz”, que Richard Murphy observa em seu livro “Carlo Scarpa and Castelvecchio Revisited”, de 2017 – além da sensação do visitante diante do envolvimento arquitetônico desse conjunto.
Scarpa controlava a luz natural de uma forma surpreendente. O uso desse recurso fez seus projetos aproveitarem o movimento das cores e sombras de cada período. O ritmo que a luz natural entrega à obra favorece todo o acervo do museu até os dias de hoje.
Não se pode esquecer, também, que os traçados reguladores de Le Corbusier determinaram e ajudaram Scarpa em muitas de suas obras. “O traçado regulador é uma satisfação de ordem espiritual que conduz à busca de relações engenhosas e de relações harmoniosas. Ele confere à obra a euritmia.” Ao falar sobre isso, temos a Tomba Brion, de 1969, localizada na Comune di Altivole, distrito de Treviso, na região do Vêneto, ao norte da Itália. Lugar calmo, plano e cercado pelas montanhas da Cortina D’Ampezzo. Tem 2.400 m² em um terreno rural em forma de L, divisa com o cemitério de San Vito di Altivole. Temos cinco edificações dentro do terreno: o Pórtico, o Pavilhão, a Catacumba, o Anexo e a Igreja.
A Tomba Brion tem uma entrada principal pelo cemitério da comunidade, o Pórtico, seguindo a hierarquia para o acesso, onde dois anéis em perfeita geometria representam a aliança do casal Brion. Aqui temos um apelo matemático, geométrico e simbólico, rico em detalhes, referenciando Palladio [arquiteto italiano Renascentista], nas suas formas, mas enxergando Le Corbusier na busca pelas linhas e eixos que essa obra possui. O projeto é todo regrado, com amarrações entre eixos dos cinco objetos fundamentais. A entrada secundária, mas não menos importante pela capela, de onde vemos a Igreja rodeada por água, em uma referência aos canais de Veneza (Palladio fez poucas igrejas, mas a veneziana Il Redentore está localizada numa das ilhas da cidade). No seu interior, uma Villa Rotonda contemporânea, com uma cúpula piramidal, um requinte de detalhes ao estilo de Scarpa que percorre todo o ambiente, fazendo estereotomias dentro e fora do complexo – o que não era novidade à Le Corbusier, já conhecido como um grande admirador de Palladio.
O observador tem ângulos do complexo sem perder a perspectiva, é conduzido no percurso pelos eixos pensados de forma matemática e geométrica, passeia pelo espelho d’água e seu Pavilhão que a recolhe e a leva até o arco. Quando se chega à Catacumba, se percebe o círculo perfeito, o desnível, a perspectiva e o ponto de fuga nos dois sarcófagos do casal Brion. Após, seguindo pelo Anexo, temos os restos mortais dos familiares, rodeados por um jardim. O percurso finaliza pela Igreja ou pela entrada principal. Independentemente do trajeto feito, nada se perde e tudo é arquitetura e poesia. A referência aos traçados reguladores é notória na planta abaixo.
Harmonia é inspiração. Poesia é arte, arte também é arquitetura. Regras podem ser transformadas em arte, em arquitetura e poesia. Independentemente da formação acadêmica, a busca por conhecimento e inovação são premissas para que aconteça a diferenciação entre profissionais. Logicamente, uma boa formação, com acesso às mais diferentes culturas e pessoas de níveis de conhecimento superiores, oportuniza uma importante retórica em torno do assunto estudado. Scarpa, contudo, em seu discurso, nos diz que “mestre é aquele que expressa coisas novas para os outros aprenderem” e desmistifica essa figura, colocando que “os mestres modernos estão todos mortos”, ou seja, não são imortais, mas seus conceitos e teorias permanecem até os dias de hoje, pois ele mesmo sofreu a influência de Le Corbusier.
Quando ele cita Frank Lloyd Wright sobre o tema “Arquitetura pode ser poesia?”, vemos o que nos acontece atualmente: “nem sempre a sociedade pede poesia” e não podemos fazer sempre da arquitetura uma poesia. Se pensarmos no tema propriamente, não a teremos. “Ela vem das coisas em si”, como disse o professor Scarpa, quase aleatoriamente.
Nosso dever como arquitetos é trabalhar sempre em prol da excelência, do compromisso assumido quando da nossa formação, mas, se quisermos destaque, o pensamento precisa fluir e ir além dos nossos conhecimentos básicos. A busca incessante por inovação e cultura muitas vezes nos direciona aos conceitos mais antigos da arquitetura, trazendo os referenciais mais importantes para a atualidade. Como disse Scarpa, os mestres estão mortos, mas toda a experiência está ao alcance das nossas mãos, bem como a busca pelo entendimento da aplicação em nossos projetos e posterior objeto, aproveitando o momento para se fazer poesia.
(*) Cristina Mioranza é graduada em Arquitetura pela Uniritter e mestranda em Arquitetura pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura (Propar) da UFRGS.