Que mudanças são necessárias para enfrentar a crise global?
Novas formas de comunicação, redes temáticas, discussões on-line, troca de opiniões entre profissionais, especialistas e responsáveis por políticas públicas exigem não apenas dados científicos, mas responsabilidade ética, o que implica uma mudança fundamental no tratamento de questões relacionadas à política, à economia e ao meio ambiente.
Como lidar com a hegemonia das soluções tecnológicas e tecnocráticas que se sobrepõem a uma abordagem ecossistêmica integrada? Que interesses estão em jogo, quem são os atores envolvidos, que regras regem seu comportamento quando têm que lidar com a dicotomia entre o interesse público e os interesses privados?
Não é incomum verificar incongruências entre os dados coletados por pesquisadores independentes e os relatórios oficiais. As declarações nomeiam as verdadeiras questões? Além do arcabouço legal, das regras estatutárias, como lidar com a questão da lealdade aos interesses corporativos, largamente recompensada por favores e benesses?
Estudiosos e comentaristas destacam que os negócios, os interesses financeiros, têm um status privilegiado nos debates das políticas públicas, na cobertura jornalística, nos currículos acadêmicos, que correm o risco de promover o “empreendedorismo” como fórmula mágica para solucionar os problemas derivados do próprio sistema iníquo de coisas.
Os dados científicos referentes às questões ambientais gerados na academia raramente chegam incólumes aos níveis de decisão mais elevados e, quando isso acontece, os tomadores de decisão tendem a escolher outros caminhos, os que atendam aos interesses dos grupos políticos e econômicos dominantes, desqualificando tudo que os contraria.
Em vez de lidar com questões segmentadas, reduzidas e tentar resolver problemas isolados e localizados, a comunicação, a advocacia, as políticas públicas, os programas de pesquisa e ensino deveriam estar atentos ao fenômeno geral, ao definir e buscar soluções para os problemas gerados no bojo do “caldeirão efervescente”.
A capacitação abrange aspectos éticos, sociais e culturais: quando uma atividade ameaça a saúde humana ou o meio ambiente, as medidas cautelares são obrigatórias, mesmo quando as relações de causa e efeito não estejam plenamente estabelecidas (questão esta que é explorada prontamente por interesses corporativos).
Como condição para impulsionar ações holísticas e transformadoras nesta importante agenda, é necessário que existam valores e visões compartilhados, em termos de governança, lideranças e sociedade, de novas alianças e comunidades resilientes, englobando transparência, resultados e impacto, cuja mensuração atenda a critérios universais.
A recuperação dos valores de populações radicadas em nichos específicos, como os povos indígenas, enfrenta o poder do sistema econômico, político e tecnológico, que não apenas impõe sua visão de mundo (os “paradigmas da produtividade”), mas ameaça ativamente seus territórios físicos e culturais, isto é, sua própria sobrevivência.
A assimetria cultural, política e econômica entre pessoas comuns e corporações tem levado a devastação natural, perda da biodiversidade, habitação precária, falta de saneamento, epidemias fatais, crime e violência, com graves impactos ambientais, políticos, econômicos, sociais e educacionais.
Valores, patrimônio comum, tradições, laços comunitários são ativamente desmontados pelo mundo globalizado: vários estudos têm mostrado que nas sociedades contemporâneas os valores resultam das mensagens orquestradas pelos meios de comunicação de massa, pela propaganda, pelo show business, por “celebridades” e pessoas de prestígio.
A regeneração política, econômica, social e cultural é uma condição essencial para a regeneração dos ambientes naturais e construídos. Aspectos filosóficos e éticos devem ser integrados em todas as áreas do conhecimento e nas análises científicas; os cientistas não podem continuar desvinculados das consequências do seu trabalho.
A hegemonia das soluções tecnológicas e tecnocráticas impede uma abordagem integrada do fenômeno geral; uma abordagem ecossistêmica inclui o estado do mundo, os aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, as dimensões íntima, interativa, social e biofísica relevantes às formas de estar no mundo.
Ao invés de tratar de questões reduzidas, segmentadas, objeto das políticas públicas tradicionais, dos formatos acadêmicos e manchetes dos media, é necessário atentar para o liame que envolve os fenômenos, o perfil dos tomadores de decisão deve ser considerado, o desenho, a formulação, a manutenção das instituições (transparência, integralidade, credibilidade).
Mudar os paradigmas de desenvolvimento, crescimento, poder, riqueza e liberdade embutidos nas instituições políticas, tecnológicas, econômicas e educacionais, mantenedoras do status quo, implica capacidade institucional, neutralidade judicial, transparência informativa e espaços sociais de engajamento cívico e participação política esclarecida.
A regeneração da Terra e a regeneração de pessoas, grupos e comunidades se complementam mutuamente e devem ser tratadas de forma simultânea, no espaço e no tempo; os problemas e os contextos em que ocorrem devem ser reinterpretados e reestruturados através de uma visão ecossistêmica, o que implica uma mudança na forma de abordá-los.
O fenômeno geral incluiria os papéis, atribuições, responsabilidades e conduta dos atores públicos e privados, suas percepções e respostas aos desafios da transição, a credibilidade, eficácia e transparência dos mecanismos de justiça e participação pública, incluindo como governos e empresas reagem às condições atuais.
A complexidade dos desafios da sociedade global exige abordagens criativas, abrangentes e de longo prazo, que incluem antecipação (consequências), reflexividade (compromissos), inclusão (envolvimento) e respostas responsáveis (capacidades): a participação, a discussão e o engajamento públicos devem preceder as decisões em todas as áreas.
(*) André Francisco Pilon é professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP