ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, DOMINGO  24    CAMPO GRANDE 25º

Artigos

Nenhum tipo de abuso se cura com o tempo

Por Cristiane Lang (*) | 13/10/2024 13:30

A crença de que o tempo cura todas as feridas é amplamente difundida, mas quando se trata de abusos — sejam eles físicos, emocionais, psicológicos ou sexuais — essa ideia não se aplica. O abuso é uma experiência profundamente traumática que impacta não só o corpo e a mente, mas também a identidade e a capacidade de se relacionar com os outros. A verdade é que nenhum tipo de abuso se cura apenas com o tempo; ele requer um processo ativo de cura, apoio emocional e, muitas vezes, intervenções profissionais.

O Impacto Duradouro do Abuso

O abuso, em qualquer uma de suas formas, deixa cicatrizes profundas. Ele pode desencadear transtornos de ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e diversos problemas de saúde mental e física. Quando uma pessoa sofre abuso, especialmente de maneira contínua, as marcas emocionais e psicológicas podem durar a vida toda, se não forem adequadamente tratadas.

Além disso, o abuso pode distorcer a maneira como a pessoa vê a si mesma e o mundo ao seu redor. As vítimas de abuso frequentemente carregam sentimentos de culpa, vergonha e indignidade, muitas vezes alimentados pelo silêncio em torno do que viveram. Essa combinação de sentimentos impede a cura espontânea. Em vez disso, o tempo sem tratamento pode intensificar a dor, pois as memórias traumáticas continuam a ser revividas e a minar o bem-estar da pessoa.

O Mito do “Superar com o Tempo

O tempo pode proporcionar distanciamento de um evento traumático, mas ele não resolve automaticamente os efeitos do trauma. Muitas vezes, as feridas emocionais do abuso permanecem enterradas e, sem tratamento adequado, podem se manifestar de maneiras prejudiciais, como em padrões destrutivos de relacionamento, vícios ou outras formas de autossabotagem.

A ideia de que o tempo cura o abuso também pode ser uma forma de minimizar ou desvalorizar a dor da vítima. Dizer a alguém que “o tempo vai ajudar” pode silenciar sua necessidade de buscar apoio ou tratamento, criando a ilusão de que devem ser capazes de superar sozinhas algo que, na verdade, é muito maior do que uma questão de passar os dias. O abuso exige reconhecimento, enfrentamento e tratamento específico para suas várias facetas.

O Processo de Cura

A cura de um abuso é um processo ativo que requer enfrentamento e, muitas vezes, uma combinação de terapia, apoio social e autoaceitação. Terapeutas especializados em trauma podem ajudar a pessoa a processar o que aconteceu, a ressignificar suas experiências e a aprender a lidar com os gatilhos emocionais que surgem.

Esse processo também envolve a pessoa redescobrir seu valor e sua capacidade de confiar, tanto em si mesma quanto nos outros. A restauração do senso de segurança, perdido durante o abuso, é fundamental para o processo de cura. Isso pode ser feito por meio de terapias com abordagens centradas no trauma.

Outro elemento essencial para a cura é o apoio social. Amigos, familiares e grupos de apoio podem desempenhar um papel importante na recuperação de uma pessoa que sofreu abuso. Oferecer um espaço seguro onde a vítima possa falar sem julgamento e ser ouvida com empatia é crucial. No entanto, cabe às pessoas ao redor entender que o simples passar do tempo não irá curar essas feridas. O apoio ativo e contínuo é necessário.

O Perigo do Silêncio

Muitas vítimas de abuso, por diversos motivos — incluindo medo, vergonha ou falta de apoio — optam por permanecer em silêncio. Esse silêncio pode, com o tempo, agravar a dor, já que as emoções reprimidas continuam a influenciar sua saúde mental e bem-estar. O ato de falar sobre o abuso, seja com um terapeuta, amigos ou grupos de apoio, é uma parte essencial do processo de cura.

Manter o abuso no silêncio não só perpetua o sofrimento da vítima, mas também permite que o ciclo de abuso continue. Acreditar que o tempo resolverá tudo pode impedir a pessoa de buscar a ajuda que precisa para quebrar esse ciclo.

O tempo, por si só, não cura nenhum tipo de abuso. Embora o distanciamento do evento possa trazer algum alívio superficial, a verdadeira cura só acontece quando a dor é enfrentada e tratada. O abuso é uma experiência que demanda atenção, tratamento especializado e apoio constante para que as vítimas possam se recuperar de maneira saudável e restaurar sua qualidade de vida.

A cura do abuso é um caminho difícil, mas possível. Ela envolve encarar o trauma, construir novas formas de enxergar a si mesmo e ao mundo, e criar uma rede de apoio que valorize e escute a pessoa, sem minimizar ou apressar sua dor. Embora o tempo seja uma parte desse processo, ele sozinho nunca será suficiente para apagar as marcas do abuso.

(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica, especialista em Oncologia pelo Instituto de Ensino Albert Einstein de São Paulo.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

Nos siga no Google Notícias