Reimaginar as configurações dominantes da tecnologia e da sociedade
A escrita ela própria se torna uma tecnologia, uma ferramenta contra sistemas de dominação, uma possibilidade de se imaginar novos futuros e alternativas, já que tudo que é construído no mundo pelo ser humano inicia-se no pensamento e na imaginação, sendo posto em circulação através da escrita e por meio das novas tecnologias de forma cada vez mais ampla e veloz.
Contudo, not all speed is movement, como aponta Ruha Benjamim, professora do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Princeton. A velocidade pode levar a novas formas discriminatórias, ou seja, não se poderia tratar da velocidade como um fim em si mesmo, mas também caberia questionarmos do porquê e para quem; quem se beneficia de determinado sistema de poder, para quem é concebida tal tecnologia, já que a política se encontra agora intimamente relacionada com a velocidade, como destacou Paul Virilio, apontando para uma revolução dromocrática, e para a substituição do termo democracia por dromocracia. A velocidade possui uma íntima ligação também com o capitalismo, e com mais ênfase a partir da crise da década de 1970 provocada pelos países produtores de petróleo, ao requerer um esforço ainda maior para renovação tecnológica do capital, determinando uma aceleração exponencial do tempo de rotação do capital, acentuando-se o clichê time is money.
É o que questiona Benjamim logo no início da sua palestra denominada de Poetics of the future – reimagining the default settings of technology and society, com foco na reimaginação de todo o sistema social, por meio da utilização de ferramentas criativas, na luta contra o status quo dominante, sexista e racista, donde a necessidade de uma poética do futuro, com destaque para o papel da imaginação de novas possibilidades.
Apesar de se apontar para a elaboração de novos conceitos ou a reinterpretação de antigos conceitos em novas bases a partir do impacto das novas tecnologias, e em especial da IA, como se observa nos conceitos democracia “digital”, cidadania “digital”, soberania “digital”, há que se questionar a inclusão de todas as parcelas da população abrangidas por tais conceitos e significados, tal como destaca com propriedade Benjamin, ao mencionar que o sistema de identidade digital estaria sendo usado como forma de exclusão, a exemplo do que ocorre na República Dominicana e dos Estados Unidos, ocorrendo a perda da cidadania de diversas pessoas.
A instituição da democracia envolve necessariamente inclusão de todas as parcelas da população e em especial de pessoas vulneráveis, sob pena de se ter uma farsa democrática ou uma verdadeira e nova forma de apartheid, o apartheid digital (Paula Sibilia), ou o que se denomina de “generalização de um estado de exceção”, conceito trabalhado por autores como Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Boaventura de S. Santos e de certa forma Michel Foucault.
Benjamin em sua palestra traz diversos argumentos e conceitos trabalhados em um dos seus principais livros, denominado Race after technology – abolitionist for the new Jim Code, onde questiona “o que há em um nome?”, apontando para a necessidade de se retomar a solidariedade. O nome engloba valores, crenças e narrativas, transmitindo uma história, ou seja, os nomes são códigos sociais e são culturais, não são neutros, mas também racializados e classificados.
Nas palavras de Benjamin, além da rotulagem na área criminal por predições realizadas por algoritmos de IA, há diversas outras correlações a partir de classificações e perfis, como nas áreas de emprego, educação, saúde e habitação, limitando ou restringindo as oportunidades das pessoas, então os designers técnicos, ainda que eventualmente de maneira inconsciente, estão a erguer um sistema de castas digitais.
Trata-se do que a autora denomina de “Novo Código Jim”: o emprego de novas tecnologias que refletem e reproduzem as desigualdades existentes, mas que são promovidas e percebidas como mais objetivas, neutras, do que os anteriores sistemas discriminatórios. O termo New Jim Code se baseia no livro The New Jim Crow, de Michelle Alexander (2012), que defende a forma como o sistema de prisão dos EUA produziu um “novo sistema de castas raciais”, por meio de uma discriminação legalizada. Ou seja, a codificação cultural racista ou discriminatória é incorporada na codificação técnica de aplicações de IA.
Como diversos autores vêm apontando, longe de serem neutros e terem objetividade os algoritmos de IA possuem vieses, sendo que as discriminações são múltiplas, envolvendo raça, gênero e classe. Neste sentido, ressalta-se a importância da abordagem já clássica de Angela Davis, no livro Mulheres, raça e classe, apontando para a intersecção entre feminismo, antirracismo e luta de classes. Davis, apesar de não comentar a questão das novas tecnologias, trata em pelo menos dois livros – Are Prisons Obsolete? e Abolition Democracy. Beyond Empire, Prisons, and Torture – da questão do sistema criminal dos EUA. Como ativista antiprisional, tendo ela própria sofrido as agruras do aprisionamento, aposta na eliminação de tal sistema, o que vai além de apenas se postular por reformas dos estabelecimentos penais. É que há uma indústria da punição, isto é, o encarceramento em massa gera lucros e tenderia a reproduzir as condições que levariam as pessoas à prisão.
Para Benjamin, há um paradoxo em tal sistema: a discriminação legalizada proporcionada pelo sistema penal dos EUA. A própria raça é tecnologia concebida para separar, estratificar e santificar as muitas formas de injustiça experimentadas pelos membros de grupos racializados. Há uma iniquidade codificada propiciando infraestruturas injustas, provocando contra-codificações com base na solidariedade e que repensam a justiça, isto é, uma abordagem emancipatória da tecnologia. Essa é a necessária mudança paradigmática e, sendo necessária, há de ser possível, devendo ser buscada com o máximo afinco.
É que, onde há poder há resistência, como dizia Foucault, podendo ser elencadas como formas de resistência, como instrumentos abolicionistas para o Novo Código Jim, as formas de resistir e desafiar o Novo Código Jim e contribuir para uma abordagem à tecnologia que vai além do acesso a novos produtos, para defender práticas de design orientadas para a justiça.
É o que sustenta, por outro lado, Benjamin, com destaque para a iniciativa Appolition como uma das tecnologias com um ethos emancipatório, um instrumento de solidariedade que direciona doações para pagamento de fianças de presos que não possuem tal possibilidade, como os negros e latinos. São instrumentos de combate contra a iniquidade codificada, denominadas de ferramentas abolicionistas, fundamentadas em uma abordagem mais holística e orientada para a justiça, solidariedade e emancipatória.
A luta deverá ser conjunta para se minorar os quadros de iniquidade codificada, por um lado, olhando-se para o design, de forma a ser repensando a fim de não mais seguir simplesmente a linha dominante, a fim de se alinhar ao que se denomina de “justiça de design”, e neste sentido, deverá abordar em sua metodologia uma abordagem inclusiva e democrática.
Conclama Benjamin para a necessidade de se reimaginar a ciência e a tecnologia para fins libertários, reconhecendo-se a interdependência entre saber e poder, e neste sentido se fala em “coliberação”, aplicando-se também tal perspectiva no design, no sentido de obter um design subversivo. São imaginários socialmente justos, implicando uma abordagem socialmente consciente do desenvolvimento tecnológico que exigiria dar prioridade à equidade sobre a eficiência, ao bem social sobre os imperativos do mercado, e que foque nas preocupações de justiça, fazendo parte do caminho para uma revolução de valores e para um despertar democrático radical, do qual a humanidade tanto necessita, para sua sobrevivência e a do planeta, do qual depende.
No sentido de se imaginar novas possibilidades para a relação humano-algoritmo e de se repensar a relação natureza e cultura, técnica, destaca-se a poética como afirma Benjamin na palestra proferida na Cátedra Oscar Sala, abrindo-se um campo de novas possibilidades para a poética negra e uma poética do futuro.
De forma complementar, o trabalho acadêmico de Conceição Evaristo e suas contribuições para o presente debate, desafiando o racismo e sexismo presentes no status quo do Brasil, e a exploração da mulher negra em particular. Evaristo é autora de romances, poesia, contos e ensaios, doutora em Literatura Comparada pela UFF e titular da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência. Destaca-se sua obra Olhos D’Água (2015), vencedora do Prêmio Jabuti, em específico ao trazer o conceito de “escrevivência”, referindo-se à memória escrita da vivência, uma escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, das experiências de vida, refletindo e reverberando toda uma tradição viva por meio da incorporação entre a poética e a ficção.
Como aponta Evaristo, trata-se de pensar a temática da tecnologia no sentido de que formas as comunidades negras e indígenas poderiam interferir a partir do “ethos negro”, ou seja, da experiência própria destes povos, da forma como se colocam no mundo. Aponta, outrossim, que ao se falar em tecnologia, e sua relação com as raças, não podemos desvincular de um necessário retorno ao processo histórico, olhando para o processo de exclusão da população negra no País, sob pena de se queimar etapas, corroborando com a afirmação de Benjamin quando esta enfatiza que termos necessariamente que abordar as condições sociopolíticas que levam à escassez e à discriminação na sociedade.
Neste sentido, há por diversas vezes um apoio jurídico embasando a discriminação e racismo, como se observa da edição de legislações com viés discriminatório, reafirmando a ainda atualidade de certa forma do pensamento de Karl Marx quando este, ainda em seus escritos juvenis, vai realizar o que depois será considerado como uma crítica da ideologia, ao fazer a crítica à Escola Histórica do Direito e de seu maior expoente, seu ex-professor em Berlim, F. C. von Savigny, inaugurando uma análise e aplicação do Direito com uma abordagem tópica e crítica. Embora não muito conhecido e devidamente estudado é de se destacar o caso do roubo da lenha, onde há a realização da crítica ao direito da época por Marx, por estar embasado em uma ideologia representativa da classe econômica lá então dominante, a aristocracia ainda. Para maior desenvolvimento, vale conferir o capítulo correspondente na obra “Teoria da Ciência Jurídica”, da lavra de Willis Santiago Guerra Filho.
Apesar do Brasil não ter elaborado, a exemplo dos EUA, as leis denominadas de Jim Crow, permitindo a legalização da segregação dos negros de escolas públicas, locais públicos e transporte público, e a segregação de banheiros, restaurantes e bebedouros para brancos e negros, vigorando entre 1870 e 1960, de forma a tornar letra morta as conquistas em torno de proteções implementadas como a 15ª Emenda, permitindo o direito ao voto pelos negros, diversas legislações brasileiras também possuiriam um viés discriminatório, com destaque para: LC 1824 da época do Império, proibindo os negros de frequentar escolas por serem considerados doentes de moléstias contagiosas, e o Decreto 7031/1878, permitindo a matrícula apenas de pessoas do sexo masculino, livres, libertos, saudáveis, vacinados e maiores de 14 anos.
Portanto, antes de falarmos no acesso de novas tecnologias, em cidadania e democracia digitais, temos que refletir acerca do acesso a estas primeiras tecnologias, as quais ainda são objeto de luta pelas comunidades negras e indígenas. É o que dispõe Evaristo, destacando o ativismo de Abdias do Nascimento ao propor o PL 1332 em 1983 prevendo bolsas de estudos de caráter compensatório aos negros, além de sua iniciativa anterior, desde 1935, consubstanciada no Teatro Experimental do Negro, a fim de trazer à discussão as ações afirmativas.
As iniciativas poéticas e imaginárias podem ser consideradas como formas de resistência, como instrumentos abolicionistas, questionando-se o que denomina Foucault de disciplinamento e normalização dos saberes ocorridos no século 18, quando houve um combate dos saberes uns contra os outros, uma luta econômico-política em torno dos saberes.
Por meio de tal normalização, ocorre a anexação, confisco, apropriação de saberes particulares, locais, artesanais, pelos saberes maiores, ou seja, tentativas de generalização, eliminação e desqualificação de outros tipos de saberes, considerados inúteis, irredutíveis e economicamente dispendiosos, ocorrendo a normalização desses saberes entre si e sua classificação hierárquica, permitindo o controle dos mesmos.
Contudo, a história não é feita de linearidades, mas de saltos e com a participação dos saberes muitas vezes não considerados ou valorizados. A partir deste reconhecimento e reconquista, há a possibilidade de se organizar um novo modo de relação entre o binômio poder e saber.
A poética do futuro é tão essencial como políticas e pedagogias, no sentido de uma poética negra, a exemplo da poesia de Amiri Baraka denominada Tecnologia & Ethos Negro, podendo ser encontradas em todo o mundo, bem como em diversas organizações no Brasil citadas por Benjamin, como a Pretalab, Perifacode, Ceert e Blogueiras Negras.
As manifestações de Baraka, reiteradas por Benjamin, vêm propondo que seja repensado o pós-ocidental, no sentido de desenvolvimento de uma tecnologia que não traga discriminação e violência contra humanos, animais e o meio ambiente, apontando que os atuais começos de emprego de novas expressões são pós-ocidentais.
(*) Paola Cantarini é pós-doutoranda da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.