Responsabilidade pública: a sobrevivência do meio ambiente e da sociedade
Nas últimas décadas, extremos climáticos e meteorológicos têm se tornado mais frequentes. Apesar disso, há um despreparo mundial para lidar com a crise climática. Os danos costumavam atingir sobretudo as regiões mais pobres, porém, com sua amplificação, têm repercutido de forma contundente sobre economias ricas. A expansão, contudo, permanece não sendo uniforme, de modo que os fenômenos e os seus efeitos variam conforme ambiente (problemas locais – geográficos, políticos, econômicos, ecológicos – associados), período (hora do dia, características sazonais e momento histórico) e grupos envolvidos (diferentes efeitos percebidos, possibilidade de enfrentamento e adaptação). Exemplo disso é que, de modo geral, os habitantes de grandes centros são mais expostos às temperaturas elevadas, devido ao efeito de ilha de calor, dada a baixa vegetação, a concentração de asfalto e concreto, e a poluição atmosférica, no que constitui um microclima urbano.
As diferenças entre o mar e a terra representam outra tendência climática, havendo na terra uma maior concentração de calor. Ainda que o mar sofra variações de temperaturas menos notáveis que a terra, como o Hemisfério Sul possui mais água do que continente, fenômenos como La Niña e El Niño e oscilações no Atlântico exercem um impacto considerável sobre o tempo em sua superfície, repercutindo na temperatura e no regime de chuvas. O desmatamento é outra causa de elevação da temperatura, alterando o regime de chuvas, reduzindo a produtividade agrícola, ampliando incêndios e perdas ambientais. Dentre os fenômenos climáticos indesejados, destacam-se no Brasil, nos últimos meses: presença de seca em certos Estados, temperaturas altas, fortes chuvas e enchentes em distintas regiões. Leste e sudeste da Austrália sofreram recentemente com chuvas intensas e ventos fortes. O fenômeno La Niña é uma das explicações de muitos desses atuais eventos, também exercendo impactos no Norte.
La Niña vem sendo quase uma constante desde o segundo semestre de 2020. Havia uma previsão de término para fevereiro de 2022, porém ocorreu um fortalecimento a partir de março, tornando-se a mais intensa La Niña de um outono em décadas. Desse modo, testemunhamos um duplo La Niña (mergulho duplo), persistência do evento por dois verões, com possibilidade de seguir para um terceiro. Seus desdobramentos têm ocorrido em várias partes do mundo, intensificando as chuvas na Australásia e no Sudeste Asiático, e provocando seca no leste e nordeste africano (Península Somali ou Chifre da África), na Península Ibérica, no Marrocos e na Argélia, no sul da América do Sul e no oeste dos EUA, a pior dos últimos tempos em muitos desses territórios, levando a estresse hídrico e, no caso da África, a emergência alimentar.
O Hemisfério Norte, com a incidência de certos fenômenos, é mais afetado com o recrudescimento do calor. Houve, especialmente em abril, o registro consecutivo de perigosos índices na Índia e no Paquistão. Posteriormente, em junho e julho, ocorreram fortes chuvas em regiões da Índia, Paquistão, Bangladesh e China. Nesse período, a China presenciou chuvas torrenciais jamais vistas pelas gerações atuais. Inúmeras pessoas tiveram que deixar suas casas. Paralelamente, uma onda de calor precoce e sem precedentes foi avançando. As temperaturas se tornaram particularmente acentuadas com a chegada do verão, ultrapassando recordes diurnos e noturnos, causando danos na Ásia oriental, no norte da África, na Europa ocidental, central, setentrional e meridional e em várias partes da América do Norte.
Com a temporada de tornados nos últimos meses (período da primavera), os EUA registraram graves ocorrências, com ferimentos, mortes ou devastação. Com a passagem desse período, ante uma grande massa de ar quente, temperaturas extremamente altas vêm sendo registradas no território. Salt Lake City (Utah), Dallas, Austin, Houston e San Antonio (Texas), Phoenix (Arizona), Vale da Morte (Califórnia) são exemplos de locais que têm apresentado elevadas temperaturas do ar e sensação térmica, por vezes empatando ou superando recordes existentes, ampliando alertas sobre desidratação e exposição. Há uma perspectiva de crescente estresse hídrico com a redução dos níveis dos reservatórios, o que não coincide com o estímulo natural para o uso de ar-condicionado, que já costuma ser elevado no país (assim como na China), além da demanda pela refrigeração de alimentos, no armazenamento doméstico e principalmente comercial. Com as redes de energia trabalhando intensamente, a poluição do ar se acentua, representando outro risco para a saúde durante a onda de calor.
Mais da metade da China também enfrenta um extremo calor, especialmente o Sudeste, nesta que é a terceira onda deste ano, com alerta nacional médio-alto, e alerta máximo em várias cidades. As temperaturas ultrapassaram 40°C em muitas regiões do sul, leste e centro do país, com vários registros de falecimentos. A intensa umidade e os altos níveis de contaminação fazem com que a sensação térmica na China seja ainda maior. Simultaneamente, cidades como Xangai seguem lutando contra surtos esporádicos de covid-19, tendo no calor um fator que dificulta a política de testagem massiva. Em Xangai, os termômetros marcaram a maior temperatura da qual se tem registro, sendo necessário o uso diário de toneladas de gelo para manter frescos os animais de um parque. Há uma preocupação com o impacto das altas temperaturas sobre a produção de arroz e algodão, e sobre os estoques de carvão, principal material usado na geração de eletricidade do país; a carga da rede elétrica de várias províncias atinge cifras recordes, o que se deve sobretudo ao uso de ar-condicionado, ameaçando esgotar o combustível, que já está com preços poucas vezes vistos. Isso já repercute no valor da eletricidade e do gás natural no continente europeu.
Na Europa, por sua vez, há focos de incêndio em diversos países e alertas climáticos médios e máximos em várias cidades. Isso ocorre em meio à menor diferença de temperatura entre Linha do Equador e polos e a um sistema de alta pressão que vem carregando os ventos do deserto do Saara e do norte da África para o continente. Com isso, houve um influxo de poeira do Saara, tornando o ar ainda mais quente, seco e de menor qualidade respiratória. Além disso, persiste a estiagem; a Península Ibérica, por exemplo, ainda não contou com chuvas regulares neste ano. Ante a estiagem e os ventos quentes, os incêndios, que têm atingido plantações, zonas florestais e residenciais de alguns países, se tornam mais graves, levando a interrupções de atividades e a evacuações de áreas, que por vezes incluem cidades inteiras. Tais condições exercem impacto sobre vegetações, com destaque para Espanha (com amplo território recentemente atingido), Itália, Grécia, Portugal e a costa atlântica da França.
Regiões de diversos países europeus têm registrado temperaturas nunca alcançadas no período, aproximando-se de – e, por vezes, ultrapassando – 40°C. Destacam-se: Reino Unido, França, Espanha e Portugal, mas também regiões de outros países, como Alemanha, Polônia e Suíça. A Inglaterra diminuiu o número de viagens e a velocidade dos trens e metrôs, já que o calor exerce risco de deformar os trilhos. Mesmo países com registros numericamente menos expressivos, tais quais Escócia e Dinamarca, têm apresentado marcas impensáveis para os seus padrões, ultrapassando 35°C, o que choca com suas arquiteturas, projetadas para o intenso frio. Dentre outros países, o calor também causa preocupação na Bélgica, na Croácia e nos Países Baixos, mas o maior número de mortes se concentra em Portugal e na Espanha. Ainda no Mediterrâneo Ocidental, no continente africano, o calor atinge níveis extremos em cidades como Oujda (Marrocos), Mascara e Bordj Bou Arréridj (Argélia).
A redução de temperaturas não se limita às zonas temperadas e à tropical, o que se relaciona à citada redução da diferença marcada entre as Zonas Térmicas. Ocorre um elevado aquecimento nos círculos polares, que tem aumentado o derretimento das geleiras. Em março deste ano, os polos geográficos registraram recordes de temperatura; a média do período foi ultrapassada em mais de 30°C na Antártida e em quase 50°C no Ártico.
É fato que há décadas existe o registro mundial de altas temperaturas e a presença das ondas de calor, porém, antes das mudanças climáticas, elas ocorriam com frequência mais espaçada. O aquecimento do planeta faz do calor extremo um fenômeno cada vez mais esperado. Evidencia-se um agravamento progressivo do cenário, ampliando as regiões atingidas pelos fenômenos climáticos e a intensidade das temperaturas extremas, aumentando também a frequência, a duração e os efeitos. Para além de um aquecimento natural da Terra, as elevadas temperaturas se devem à atividade humana sobre águas, atmosfera e biosfera terrestre, influenciando no sistema climático.
A escassez de chuvas, o calor e os incêndios estão resultando em milhares de mortes. Enchentes, inundações, alagamentos, deslizamentos, erosões, desertificação, furacões, subida do nível do mar e ondas polares são outros danos da crise de extremos climáticos.
O crescente efeito das mudanças climáticas possui repercussões ambientais, sociais, sanitárias e econômicas, ao prejudicar vidas humanas e meio ambiente, gerar gastos e incidir sobre a produtividade em diversos ramos. As pessoas enfrentam prejuízos sobre as condições de trabalho e habitação, envolvendo problemas econômicos e desastres naturais. Muitos episódios incluem traumas físicos, interrupção da rotina, perda de imóveis e outros bens, além dos impactos sobre uma família na qual um dos membros adoece ou morre. Mesmo em situações de segurança, há o desconforto físico e emocional causado por extremos climáticos, que pode afetar a saúde, sobretudo dos mais vulneráveis ou expostos. No caso do calor, há uma preocupação especial com grupos como: crianças, idosos, gestantes, pessoas com doenças crônicas, pessoas que trabalham sob o sol. Altas temperaturas estão ligadas ao risco de hipertermia e adversidades afins, como cefaleia, câimbras, náusea, tontura, exaustão, insolação e outros problemas indiretos.
Nessa situação de calor sufocante, as pessoas estão sendo aconselhadas por autoridades a ficarem em casa sempre que possível, evitando as atividades extenuantes e ao ar livre (sobretudo nos horários mais críticos), e mantendo a hidratação. Recomendam que as pessoas se protejam adequadamente quando precisarem se expor a altas temperaturas e ao sol, incluindo o uso do protetor solar. A economia de energia é outra solicitação frequente.
As respostas à crise, as políticas ambientais e as tendências geográficas variam conforme território ou governo, sem embargo, vale lembrar que os fenômenos climáticos não obedecem a fronteiras, exigindo ações eficazes e colaborativas. Os principais responsáveis pelas mudanças climáticas são alguns dos países economicamente mais ricos, nações que deveriam assumir o protagonismo da transformação, atendendo às metas acordadas internacionalmente na Agenda 2030 (ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) e no Acordo de Paris. Igualmente, espera-se das economias mais ricas o apoio para a redução da desigualdade econômica e sanitária em distintos países, uma vez que o impacto social e a capacidade de enfrentamento e adaptação não são homogêneos.
A necessidade da prática solidária e sustentável nem sempre está presente entre as lideranças, sendo um propulsor do panorama de desequilíbrio atual. O desinteresse pelas pautas socioambientais, manifesto na indiferença ou no incentivo a políticas predatórias, é recorrente, prejudicando populações e acentuando os riscos futuros. As eleições representam uma nova oportunidade de observar as propostas ambientais dos candidatos a distintos cargos.
A sobrevivência da humanidade, assim como a qualidade de vida, depende do comprometimento social e político para com o meio ambiente. Se mudanças de mentalidades e ações não ocorrerem também por parte da população, em conformidade com acordos internacionais, nacionais, regionais e locais para a contenção do aumento da temperatura global, o quadro de extremos meteorológicos e climáticos será recorrente.
(*) André Aparecido Medeiros é doutorando da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
(*) Maria da Penha Vasconcellos é docente da FSP-USP e Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.
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