Sonetos
Um soneto é um poema com 14 versos, em geral divididos em dois quartetos e dois tercetos. O soneto clássico (de agora em diante, simplesmente, soneto) tem regras mais rígidas. Por exemplo, rimas consonantes e um número fixo de sílabas em cada verso. O mais comum é encontrar sonetos com versos decassílabos, em que a última sílaba acentuada em cada verso é a décima. Em espanhol, tais versos se dizem endecasílabos porque, como a maioria das palavras em nossas línguas são paroxítonas, quando a última sílaba acentuada é a décima, o mais comum é que o verso tenha 11 sílabas. Na edição de 20 sonetos de Camões comentada por Sheila Hue, a regra decassilábica se cumpre rigorosamente, exceto no último verso do último poema. A este verso, “Mais desventurada que se viu!”, falta uma sílaba. Segundo a editora, o Visconde de Jurumenha, no século XIX, resolveu corrigi-lo para “Mais desgraçada que jamais se viu!”. A correção é, de fato, um decassílabo, mas sofre de um defeito mais grave, como veremos mais adiante.
A acentuação na décima sílaba é amplamente aceita, mas o que acontece com os outros acentos do verso? A penúltima sílaba acentuada é crucial e costuma ser chamada de “sílaba rítmica”. O mais comum é que esta seja a sexta sílaba. Todos os (280) versos dos sonetos de Camões são acentuados nessa sílaba, embora o segundo verso do Soneto IX (“Muda-se o ser, muda-se a confiança”) exija uma leitura forçada para satisfazer essa regra. O último verso do último soneto, já comentado aqui, poderia ser corrigido para “A mais desventurada que se viu!” respeitando acentos na sexta e na décima. Surpreendentemente, o poeta não acrescentou o artigo no início do verso, e a correção do Visconde, com acentos na quarta e na oitava, não combina com o resto da obra. Quase todos os versos de Camões têm três acentos; o primeiro costuma estar na segunda ou terceira sílaba e, com menor frequência, na primeira ou na quarta.
Os primeiros sete versos do Hino Nacional Brasileiro são decassílabos com acentos na segunda, sexta e décima sílabas. Versos com essas características são chamados “heroicos”. Quando a terceira é acentuada em vez da segunda, chamam-se “melódicos”. Atribui-se a José Galdino da Silva Duda, em 1898, a criação do “martelo agalopado”, modalidade da literatura de cordel baseada na décima espinela, mas que, em vez de heptassílabos, usa decassílabos (por exemplo, “envolvido nas dobras do destino”). Algumas composições de Zé Ramalho (“Foi um tempo que o tempo não esquece”) obedecem ao esquema do martelo.
Quando convocados para ler em voz alta ou declamar poesia clássica (com rima e métrica definida), alguns atores optam pela leitura dramática com desprezo pelos ritmos sob os quais a poesia foi concebida. Provavelmente, os poetas não ficariam felizes com essa leitura. Ler poesia não é a mesma coisa que falar; ninguém fala em verso, exceto, talvez, pessoas afetadas por curiosas alterações neurológicas. Portanto, a “naturalização” da leitura poética é, paradoxalmente, artificial.
O Soneto VI da seleção de Hue é o famoso “Sete anos de pastor Jacó servia”. Parece que leitores sofisticados consideram que este não se encontra entre os melhores sonetos de Camões, mas o gosto popular o consagra como o melhor. Um ponto de vista matemático tende a coincidir com o gosto popular. A razão é que este soneto se apresenta como uma quase explícita resolução de um problema: contar uma história dentro dos estreitos limites das regras estabelecidas, com um remate liricamente filosófico: “Para tão longo amor tão curta a vida”. A sensação é similar à contemplação da prova elegante e concisa de um teorema. É verdade que leituras posteriores se incomodam com a palavra “cautela”, com a qual termina o oitavo verso, e cujo objetivo é meramente rimar com “vê-la”, pois Labão, mais que cautela, usou esperteza e malandragem para juntar Jacó com Lia, e não com Raquel, mas este é um defeito menor. Talvez toda obra de arte seja a resolução de um problema que permanece desconhecido para nós e, provavelmente, também para o artista. Na Arte, estaríamos próximos do que matemáticos chamam “problema inverso”, que, na clássica definição de Gene Golub na Enciclopédia Britânica, corresponde a uma situação em que conhecemos o resultado, mas não o problema em que se origina.
Por algum motivo ainda misterioso, no momento em que este texto é escrito, o ChatGPT é péssimo para escrever sonetos. Qualquer tentativa nesse sentido dá resultados horríveis. O temível algoritmo não sabe contar sílabas nem rimar de forma consonante. Por outra parte, por tentar satisfazer (mal) as regras do soneto, o conteúdo produzido é sofrível. O ChatGPT consegue gerar textos coerentes sobre “A criação do gado bovino desde uma abordagem lacaniana”, mas não consegue fazer um soneto decente sobre temas muito mais simples.
Esta constatação nos leva a um dilema que preocupa muitos colegas docentes: como podemos garantir que os alunos não escrevam monografias e teses apelando ao ChatGPT? A solução é simples: peçam aos seus alunos que elaborem os textos em forma de soneto. Bem, pode ser que quando este texto seja publicado, o ChatGPT já tenha aprendido a fazer sonetos razoáveis. Nesse caso, será prudente descartar o soneto e apelar para o martelo agalopado.
(*) José Mario Martínez é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc).