Um salário mínimo de não pobreza no Brasil
Você já se perguntou por que sobra mês no fim do dinheiro? Você não está só. Um relevante estudo para o Banco Mundial identificou que 26% da população brasileira estava em condição de insuficiência de renda em 2017. Essa é uma das medidas mais práticas e abrangentes para avaliar a incidência de pobreza para grandes populações.
O valor é condizente com outras pesquisas que indicam que entre 7% e 37% da população brasileira passa fome de acordo com o conceito de insegurança alimentar moderada a grave. Ao mesmo tempo, pesquisas indicam que 60% dos trabalhadores estendem suas jornadas de trabalho em mais de uma ocupação; uma das fontes do problema, portanto, parece estar na incapacidade de os salários retirarem os trabalhadores da pobreza.
O direito a um salário decente, capaz de permitir uma existência digna, é definido no art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), enquanto o art. 7.° da Constituição Federal (CF) do Brasil estipula que o salário mínimo deve atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Apesar disso, não existe consenso acadêmico ou político sobre como fixar seu valor de forma objetiva.
Na pesquisa “Salário Mínimo a Partir da Linha Internacional da Pobreza”, buscou-se avançar na questão a partir da seguinte pergunta: quanto deveria ser o salário mínimo para que os trabalhadores e suas famílias não sejam pobres? A premissa básica aproxima o estudo da DUDH e da CF ao estabelecer que é indigno que quem contribui com trabalho para a sociedade viva em condição de pobreza.
A metodologia desenvolvida se baseia em Anker e tem como componentes principais a linha de pobreza, a quantidade de pessoas em relação ao número de trabalhadores em uma família e os impostos e direitos incidentes sobre os salários. O resultado é uma metodologia de Salário Mínimo de Não Pobreza (SMNP) que pode ser aplicada em diversas partes do mundo ou em realidades particulares, como negociações sindicais.
Foi utilizada a Linha Internacional da Pobreza (LIP) do Banco Mundial, que atualmente é definida a partir de patamares de renda dos países. O Brasil é considerado um país de renda média-alta, de forma que o valor da LIP era de 6,85 dólares por dia em 2017. Ajustado pelo fator de Paridade de Poder de Compra (PPC), essa LIP equivaleria a 17,63 reais por dia, ou 536,25 reais por mês para cada pessoa em dezembro de 2022. O valor corresponde ao consumo mínimo para uma pessoa não ser considerada pobre segundo os critérios do Banco Mundial.
Para a razão entre o número total de pessoas e de trabalhadores com renda em cada família, utilizou-se como parâmetro o primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU aplicado ao país. Este define que a humanidade deverá erradicar a extrema pobreza e ao menos reduzir pela metade o número de pessoas pobres até 2030.
Assim, ao chegar neste ano, no Brasil, no máximo 13% da população deverá ser considerada pobre – equivalendo, de acordo com o censo de 2010, a famílias de até 5 pessoas. Por sua vez, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, chegou-se à estimativa de 1,55 trabalhadores por família em dezembro de 2022 para fins de verificação do SMNP no caso brasileiro.
Por fim, o cálculo do SMNP deve também levar em conta o décimo terceiro salário, a previdência social, o imposto de renda, as férias remuneradas, o abono salarial de férias e a contribuição sindical obrigatória. Em conjunto, esses elementos implicam um aumento de 2,9% em relação ao salário bruto nas condições de implementação de salário mínimo.
O resultado principal da aplicação da metodologia é a estimação de um SMNP igual a 1.680 reais no mês de dezembro de 2022. Este salário é o valor mínimo que assegura que 87% dos brasileiros sejam capazes de se situarem, a si e a suas famílias, num patamar acima da LIP.
Isto é, 39% superior ao salário mínimo oficial (SM) vigente à época, de 1.212 reais – um aumento real de 5,6% ao ano até 2030. O salário mínimo foi implantado no Brasil em 1940 e seu valor se aproximava de 1.085 reais a preços de dezembro de 2022. Os anos de maior poder aquisitivo estenderam-se de 1954 a 1964, quando se atingiu o maior valor médio de 12 meses, equivalente a 1.576 reais.
Vale dizer, nem hoje nem em qualquer outro momento o salário mínimo brasileiro permitiu aos trabalhadores e a suas famílias condições melhores do que os padrões de pobreza baseados na LIP do Banco Mundial.
Nosso estudo também examinou outras metodologias de cálculo de salário decente – como o Salário de Bem-Estar (SBE), da Global Living Wage Coalittion (GLWC), e o Salário Mínimo Necessário, do DIEESE. Aplicações da metodologia do SBE obtiveram valores de 2.524 reais para o Sul de Minas Gerais e de 3.129 reais para a região não metropolitana de São Paulo em dezembro de 2022, enquanto o DIEESE indicava que o valor salarial mínimo necessário, aferido com base no custo de uma cesta básica de alimentos, era de 6.647 reais no mesmo período.
O resultado do SMNP, sendo o menor dos valores, deve ser encarado como etapa inicial do enfrentamento à incidência da pobreza entre os trabalhadores assalariados no Brasil.
Por ser referência para diversos outros salários e afetar justamente os trabalhadores de menor renda, um Salário Mínimo de Não Pobreza pode ser uma política pública bastante potente para a redução da pobreza e a redistribuição de renda. Deve, ademais, articular-se com outras políticas públicas, como as de imposto de renda, aposentadoria, transferências de renda e acesso igualitário ao mercado de trabalho.
O propósito final dessas políticas deve sempre garantir que trabalhadores, crianças, idosos, mulheres, mães e negros superem a insuficiência de renda, situação relevante de caracterização da pobreza, e consigam desenvolver plenamente suas capacidades humanas, como ambicionado pelo Nobel em Economia, Amartya Sen.
(*) Isabel Pitta Klein é economista e engenheira eletricista.