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Beba das Crônicas

Meus olhos são verdes enquanto sonho

André Alvez | 24/10/2020 09:35

Saudade é um punhado de areia nos olhos.
Penso no passado enquanto a pressa entra pelos vãos do vidro do carro. Perto de casa existe um campinho de futebol, observei de soslaio, dias atrás, naquele breve momento que a febre da pressa me abandonou.
E vi um menino correndo num campo de terra atrás de uma bola velha. Areia nos olhos...
Ah, minha mãe, me conte histórias, de quem era aquela carroça atravessando a Avenida Contorno, o caminho cheirando estrume de cavalo, me levando de passageiro?
Hoje apenas sonho com aquelas manhãs fagueiras, reencontro o mesmo céu bordado de estrelas e nele voam as asas ligeiras das borboletas azuis que versou o poeta Cassemiro de Abreu.
Eu não deveria sentir saudades daqueles tempos rudes, mas sinto. E sonho às vezes.
Meus filhos eram pequenos quando acelerei a vontade de vê-los crescidos. Agora que cresceram, não tenho como fazer o tempo voltar e sinto saudades de quando suas mãos pequenas abraçavam o meu rosto. As folhas das árvores caíram e os outonos se foram, apressados como eu. Uso um relógio de pulso dos ponteiros grandes parados, mas os segundos atropelam os pensamentos.
Meus olhos mudavam de cor quando eu era menino; pela manhã eram castanhos, quando o sol se punha se transformavam num quase verde e assim prosseguiam durante o sonho. Ninguém me disse isso, ninguém percebeu, mas eu imaginava assim.
O acelerador é mais atraente que o freio.
Agora, sentado diante do computador, revejo passo a passo como foi meu dia até aqui: eu tinha tempo, mesmo assim, atravessei o sinal fechado. Na outra esquina, um pedinte deixou pendurado no retrovisor um pacote de balas. Eu tinha um real jogado no console e mesmo assim recusei as balas, sequer olhei nos olhos do pedinte. Acelerei, eu tinha tempo, ainda assim, não cumprimentei o frentista, nem sei a cor dos seus olhos, que talvez mudem de cor ao cair da noite, quem sabe?
Acelerei novamente enquanto a chuva caía formando a enxurrada que não levou embora a minha pressa.
Nuvens invadiram meu pensamento: faltou tempo para visitar aquele amigo antes dele morrer. Deixar para depois foi mais confortável - suspiro. Aos poucos, vou me esquecendo do seu rosto e o som da sua risada, restando a nuvem opaca do último cigarro que fumamos, turvando o meu olhar. Na pressa, o cinzeiro ficou cheio e o cigarro acabou.
E a nuvem prosseguiu confrontando minha ânsia; a minha tia, que ajudou a me criar, falta tempo para ir visitá-la.
Eu vou tia Eurinda, assim que essa pressa acabar.
Os minutos são pura abstração, por que usei de reticências quando necessitava apenas de um ponto final?
Borges escreveu que na fúria da pressa Demócrito de Abdera arrancou os olhos para não se distrair e poder pensar. Demócrito me causa anseios e medos: que será de um homem com tempo para pensar, mas sem os olhos de ver?
Meus pés prosseguem ligeiros, embora as portas que hoje atravesso não façam tanto ruídos e o verde já não invade meus olhos nos fins de noite.
Venha Dona pressa, chegue perto, tenho algumas coisas para lhe dizer: é preciso perceber o vôo colorido da borboleta, antes que morram as lagartas. E se as abelhas não mais existirem quando enfim a pressa acabar e não restar um único favo do mel? É preciso ver a alvorada, da praia ou da beira do rio, enquanto existe o sol.
Vá embora Dona pressa, que meus olhos já não são verdes quando o dia termina e um deles já se zangou com o tempo.
Ah minha mãe, me conte histórias, daquelas de quando as fontes brotavam na terra, antes que tudo se transforme em areia e essa mesma areia, um punhado dela, se esparrame em nossos olhos no tempo que nos resta, se transformando em rios de saudades.
Os deuses dormem sem pressa, sabem que o fim dos tempos ainda demora e a pressa dos homens nada mais é que a escravidão do próprio homem.
E é por isso que eu sonho. No sonho não tenho pressa e lá, sem que ninguém perceba, meus olhos continuam verdes.

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