Outros outonos: o vendedor de abacates
As minhas estações já são várias.
Conheço bem a dor do frio, a custo escapamos do inverno de 1975 com vida. Gosto de flores, aprecio o calor, mas a minha estação preferida é o outono. Não chove, o frio, nem o calor são intensos e as árvores se despem.
Um outono em especial me marcou: girava o mundo no ano de 1976, morávamos na vila Planalto, de aluguel, numa vila de casas pequeninas, um quintal extenso, o enorme pilão de madeira fincado na terra logo após a porta da cozinha, mangueiras, goiabeiras e a cerca de arame protegendo o galinheiro no final.
Lá no fundo, como se fosse um chamado, balançavam as folhas de dois enormes pés de abacate.
A fruta madurava, caía, apodrecia.
Eram tantas, enormes, reluzentes, da casca negra como as aranhas que desenhavam as teias perfeitamente traçadas entre os troncos das árvores.
Nem eu, nem os passarinhos dávamos conta de comer as frutas caídas.
O desperdício de comida sempre me incomodou.
Na frente da vila, existia um bolicho e o dono vendia de tudo, menos abacate – percebi –. Os filhos dos outros, eu via com meus olhos caídos, viviam por lá com doces entre os dentes, enquanto os pais bebiam cerveja.
Eu olhava, amassava entre os dedos uma bola de borracha que achei perdida e meus pensamentos fuzilavam aqueles moleques. custava oferecer um naco? Tomara que engasguem...Nem me olhavam.
Eu precisava ganhar algum dinheiro, não apenas pelos doces, mas principalmente para acalmar o meu anseio maior: beber Coca-Cola.
Naquela época, as tampinhas da Coca-Cola traziam figurinhas dos personagens da Disney e eu resolvi colecionar. Bingola Disney era o nome do jogo e ganhava quem preenchia todas as figurinhas. Assim, ia lá no bolicho nos fins de tarde e pedia as sobras das tampinhas. O dono, um senhor enorme e negro, do rosto bolachudo e furo profundo no queixo, nem me olhava ao passar para minhas mãos, ligeiramente trêmulas, as tão almejadas tampinhas.
Não satisfeito, feito um cão vira-latas, remexia o lixo atrás de alguma jogada fora.
Fiz isso por um bom tempo, até que o filho do dono resolveu também colecionar as tampinhas.
Eu tinha ódio daquele moleque.
Beber Coca-Cola, naqueles tempos, era raro e inesquecível.
O gosto ficava por um bom tempo colado na boca e o som do arroto era algo indescritível. Barulho e prazer. Trago comigo a certeza que a fórmula do refrigerante era mais forte naqueles tempos, continha algo diferente dos de hoje e certamente mais gás.
Ou será que tudo de antigamente era melhor do que hoje?
Precisava dar um jeito de comprar a bebida, o problema era: como, se meus bolsos viviam vazios?
Então vieram os ventos de outono balançando os pés de abacate e as frutas caíram as pencas, matando duas galinhas.
Foi quando tive a ideia de vender abacates.
Sem muito pensar, enchi um saco com doze ou dez e saí caminhando feito os turcos viajantes da Rua 14 de julho, batendo palmas de casa em casa.
O dono do bar apanhou dois abacates e me pagou o dobro do preço que eu pedia. Os brilhos de meus olhos mirando apenas a geladeira, repleta de Coca-Cola, apagaram o desejo de lhe falar sobre o valor a maior. Imaginei que um homem tão rico, dono de um bolicho, não se incomodaria de perder três ou quatro moedas.
Segui descendo as ruas do bairro, em cada casa existia um cachorro brabo cuidando o portão, a boca espumando, as presas brilhando mais do que as cascas dos abacates.
Mas nem pensei desistir. Os latidos ajudavam, as pessoas saiam até o portão apressadas, imaginando acontecimentos inesperados.
E lá estava eu, no sorriso de dentes tortos, camisa esfarrapada, calção corroído pelas traças, nas mãos uma sacola na qual brilhavam os abacates.
Antes do meio dia, já havia vendido todos os abacates.
Voltei todo suado até o bolicho e pedi uma Coca-Cola. O dono me atendeu num estranho riso no rosto. A garrafa estava bastante gelada, do jeito que eu gosto. Guardei com cuidado a tampinha do Pato Donald e bebi no gargalo, sem tirar da boca.
Delícia, delícia, delícia. Pus as mãos na barriga, respirei fundo e arrotei alto, sem me importar com as pessoas no bolicho e o riso de todos em volta. Pedi outra Coca-Cola, depois outra e mais outra, até o dinheiro acabar num resto de balas 7 belo.
Segui rumo à minha casa mirando os dois pés de abacate, no rosto um sorriso de agradecimento, logo trocado por dois ou três arrotos. Sim, naquela época, a Coca-Cola era mais gostosa e tinha mais gás.
Ainda que me doessem os pés após a longa caminhada, me sentia como um cavaleiro da távola redonda após vencer a batalha.
Poucas vezes na vida me senti tão satisfeito e realizado.
Desde aquele dia, os ventos de outono não assopraram mais as galhadas das árvores e os abacates não mais caíram, enterrando o bom vendedor que eu poderia me tornar. Pode ter sido isso, ou foi mesmo pura preguiça, não sei ao certo.
E agora, depois de ontem, quando os números da balança de uma farmácia apontaram um peso preocupante, me pego aqui amarrado na certeza que preciso fazer regime e isso consiste em parar imediatamente de beber Coca-Cola. Embora tenha o gosto inferior ao de outonos distantes, ainda hoje é o meu refrigerante preferido.
A abstinência vai me atormentar, eu bem sei.
Ontem mesmo, sonhei que estava sentado na última ponta do Morro do Chapéu, olhando Aquidauana lá embaixo e bebendo Coca-Cola.
Acordei no momento do arroto, assustado, limpando a boca do gosto amargo da culpa.
Uma sede imensa me acompanhou ao levantar, corri até a geladeira e bebi bastante água.
Que pena, água não tem gosto de infância, não tem tampinhas com os personagens da Disney, nem me faz arrotar de satisfação.
André Alvez