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Cidades

Em MS, "rigidez" alvo de denúncias atrai famílias a Arautos do Evangelho

Em dia de missa e sob clima tenso, conversamos com fiéis da organização que virou alvo de denúncias de abusos contra crianças

Izabela Sanchez | 28/10/2019 14:32
Visão frontal do castelo medieval, sede dos Arautos do Evangelho em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Visão frontal do castelo medieval, sede dos Arautos do Evangelho em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)

É na Rua Rotterdam, no Bairro Rita Vieira, entre poucas casas recém-construídas e chácaras antigas com cara de abandono, onde fica um castelo que destoa do padrão arquitetônico de Campo Grande. Fechado entre muros e portão verde, só é possível ver a sede da associação religiosa Arautos do Evangelho quando o vigia, munido de rádio, abre a guarita para que um carro entre ali.

Erguido em 2 mil metros quadrados, cercado por estacionamento e jardins, está o projeto de arquitetura gótica – estilo medieval pré-renascentista conhecido principalmente pelas altas torres pontiagudas e abóbodas – de cores bege claro e verde.

Em Campo Grande, o edifício dos Arautos do Evangelho começou a ser construído em 2008. Aberto para que a comunidade participe de uma missa aos domingos às 17h, é famoso pelo presépio nos fins de ano. Mas agora os holofotes têm se voltado à organização de maneira diferente, depois de vir a público investigação sobre alienação parental, castigos físicos, racismo e abuso sexual. As denúncias foram veiculadas primeiro na revista Metrópoles e agora pelo programa Fantástico.

A reportagem do Campo Grande News visitou a sede no domingo (27), antes da missa começar. Por volta das 16h, carros, alguns luxuosos, já são vistos chegando. A reportagem foi autorizada a entrar no local e foi recebida por um jovem de 19 anos, que, assim como o porteiro, estava munido de rádio de comunicação.

A reportagem pediu ao jovem que indicasse um dos arautos que pudesse falar sobre a ordem e representar posicionamento, perante a instituição, sobre as denúncias veiculadas. A pessoa indicada se apresentou como “Padre Max”. Único vestido com a túnica marrom, o Padre Max Adriano disse que, no momento, estava ocupado, que só poderia falar com hora marcada com a assessoria de imprensa e indicou que a reportagem conversasse com a comunidade que chegava aos poucos. No entanto, a equipe nao deu um passo sem o monitoramento dos funcionários da associação. 

Detalhes da parte frontal do castelo dos Arautos do Evangelho em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Detalhes da parte frontal do castelo dos Arautos do Evangelho em Campo Grande (Foto: Paulo Francis)
Reportagem foi recebida por um arauto de 19 anos (Foto: Paulo Francis)
Reportagem foi recebida por um arauto de 19 anos (Foto: Paulo Francis)

Dá para saber que a missa inicia porque do lado de fora já é possível ouvir instrumentos que celebram no local sons de música erudita. Sentado do lado de fora, sozinho, em banco de madeira, o empresário, proprietário de uma escola, Joel Miyasato, 60, conversou com a reportagem.

Miysato disse conhecer os Arautos há “40 anos”. “Venho pela correção da pregação. É uma missa mais obediente dentro das normas católicas”, comentou. Divorciado e pai de dois filhos, contou que a ex-esposa é adventista, assim como os filhos, mas que “reza pela conversão dos filhos”.

Um dos pontos da reportagem aborda o afastamento das crianças e adolescentes da família ao fazerem parte da ordem. O empresário acredita que isso é normal. “Quando uma das pessoas que você mais ama se afasta, todo mundo fica revoltado”.

Sobre as acusações de abuso psicológico e físico, disse que a rigidez é presente em várias escolas. “Então escola militar também tem abuso infantil. Não sei a fundo as denúncias, mas os colégios também são rigorosos. Se quiser estar lá tem que seguir a disciplina deles. Não tem lugar de progresso sem ordem”.

Vestes dos integrantes são alusões à cultura religiosa medieval (Foto: Paulo Francis)
Vestes dos integrantes são alusões à cultura religiosa medieval (Foto: Paulo Francis)

Nossa verdade - A todo o momento, quem faz parte da ordem em Campo Grande e quis falar com a reportagem citava necessidade em falar do que chamaram de “nossa verdade”. Os Arautos reúnem-se, principalmente, em volta da figura da Virgem Maria, que ilustra o brasão da ordem. Motivos clássicos em alusão à Maria também decoram o teto das abóbodas e o comprimento tradicional por ali é “Salve Maria”.

Vestido com a túnica tradicional branca com a cruz de Santiago no peito, o integrante do que os Arautos chamam de "cooperados", Alexandre Correa diz que tem um filho de 14 e outro de 17, internos na sede dos Arautos do Evangelho na serra da Cantareira em São Paulo. “Um pai sabe o que se passa aqui dentro”, garante. Ele negou qualquer abuso no internato e disse que os filhos aprenderam "três línguas estrangeiras”, citando o mais velho, além de instrumentos musicais. “Em um ano, visitei ele 15 vezes. Sempre tive acesso aos Arautos”, comenta. 

Este ano, o Vaticano decidiu nomear um interventor para a associação, o chamado comissionário. Segundo o portal de notícias do Vaticano, todas as ações desenvolvidas pelos Arautos do Evangelho passarão a ser “guiadas” pelo cardeal brasileiro Raymundo Damasceno Assis, arcebispo emérito de Aparecida do Norte (SP). A decisão de nomear comissionário ocorreu após o vazamento de um vídeo em que o fundador dos Arautos, monsenhor João Scognamiglio Clá Dias foi visto em reunião com alguns dos integrantes, ocasião em que um deles lia, para o fundador, conversa indicando a possessão, no Papa Francisco, por um demônio.

Este assunto parece provocar, para além das denúncias e reportagens, mais nervosismo. O cooperador ficou contrariado com o termo “intervenção”. Disse que a nomeação de comissionário é ação de praxe para ordens da religião católica. “É uma obrigação da igreja acompanhar. Voltaram para lá e não encontraram nada. Ninguém está vindo fechar a ordem”, comentou.

Quem também quis falar, marcado pelo tom de nervosismo, foi o corretor de imóveis Waldemar Guimarães Barbosa Filho, 32. Contou que vai às missas todos os domingos há dois anos, junto com a esposa. “Existe uma ordem. É bem organizado. É isso que incomoda as pessoas”, resumiu.

Um médico e militar do Exército ex-integrante da organização disse nunca ter visto nenhum tipo de discriminação racial nos Arautos do Evangelho. “Eu conheci os Arautos mais ou menos em 2005. Estudei na escola dos Arautos em 2005, em São Paulo. Não tem nada de discriminação, nunca vi nada de discriminação nem nada, qualquer coisa que possa agredir”, disse.

Alexandre e a esposa Daiane (Foto: Paulo Francis)
Alexandre e a esposa Daiane (Foto: Paulo Francis)

Investigados - Investigação do MPSP (Ministério Público Estadual de São Paulo), que corre em sigilo na comarca de Caieiras (SP), foi detalhada em duas reportagens divulgadas pelo Fantástico, programa da rede Globo exibido aos domingos. A reportagem teve acesso, além da investigação, a depoimentos e vídeos sobre a ordem religiosa.

Em diversos estados, mas, principalmente, em São Paulo, os Arautos do Evangelho funcionam, também, como internato onde estudam crianças e jovens, meninos e meninas, de todo o Brasil. O espaço de formação estritamente religioso é acusado de praticar abusos psicológicos no dia-a-dia da rotina de crianças e adolescentes, e em cerimônias específicas, a exemplo do exorcismo, prática religiosa conhecida por expurgar demônios.

Os vídeos mostram entrevistas não só de pessoas que já foram internos em São Paulo, mas também vídeo do fundador dessa ordem religiosa, Monsenhor João S. Clá Dias, durante conversão de uma criança para voto de castidade – a menina chora e afirma não querer – e também em cerimônia de crisma, prática católica que simboliza o sacramento em que se ratifica o batismo, em que o fundador aparece em vídeos dando tapas no rosto de meninos.

Para as famílias que frequentam o castelo gótico em Campo Grande, muitas já parte dessa associação religiosa (os chamados cooperadores) a “ordem estrita”, a “disciplina” e a rigidez da “liturgia” não são motivo de acusação. São a razão para frequentarem o espaço e fazerem parte dos Arautos do Evangelho.

A ordem religiosa brasileira foi fundada em 1999, formalizada em 2001 pelo então Papa João Paulo II. A entidade começou como dissidência da organização da sociedade civil TFP (Tradição, Família e Propriedade).

Teto do castelo tem motivos que simbolizam a virgem Maria (Foto: Paulo Francis)
Teto do castelo tem motivos que simbolizam a virgem Maria (Foto: Paulo Francis)

Para o médico do Exército, a associação resgata valores que existiam no passado. “A igreja tem diversos carismas. Os Arautos têm um carisma específico e muito disso as pessoas não entendem. O carisma dos Arautos é um carisma diferenciado e é importante porque a igreja preserva muitos dos valores que lá no passado existiam, mas também não deixa de ver o que acontece ao seu redor. Acho que isso é uma coisa importante. Eu sou a prova. Eu saí dos Arautos, mas continuo feliz por poder conviver”, comentou.

A dona de casa Cilene Cristina Lopes da Silva, 54, tem uma filha que faz parte da chamada “Ordem II” dos Arautos, que são as mulheres dedicadas e ordenadas de forma completa à associação religiosa. A filha dela entrou para os Arautos aos 19 anos, mas ela conheceu a ordem quando o filho frequentou o espaço.

“Meu filho começou a participar na casa que era na Marechal Floriano e em 2006, 2007, ele começou a vir aqui. Meu filho era pequeno, estudava no colégio e veio aqui, participou no projeto, só que não era a vocação dele. Ele saiu, voltou para casa, é um rapaz de 19 anos. Só que através do meu filho, com o conhecimento que a gente teve aqui, a minha filha entrou para os Arautos”, afirma.

Ela relata que a filha cursava o terceiro ano da graduação em Engenharia da Computação, que pagava com o emprego que tinha, já que a família não tinha condições de arcar com os estudos.“Ela foi para São Paulo com 19 anos. Ela foi conhecer a instituição, porque aqui em Campo Grande não tem a ordem feminina. Foi em fevereiro, que era uma época de Carnaval. Minha filha estava no terceiro ano de faculdade, engenharia da computação. O sonho dela era essa faculdade”.

“Ela trabalhava no Inmetro, tinha um salário muito bom. E mesmo assim ela tomou essa decisão com 19 anos e está até hoje lá muito feliz. Hoje ela tem 26. Sempre foi uma pessoa muito feliz, tanto que lá no Inmetro o pessoal gosta muito dela até hoje, porque é uma pessoa muito alegre, muito feliz e continua. Todo mês ela me liga duas ou três vezes. Eu posso ir pra São Paulo ver minha filha a hora que eu quiser, só que eu não tenho condições e eu não vou muito porque eu não tenho condições, mas eu posso ir a hora que eu quiser”, enfatizou.

Toda a entrevista com Cilene foi filmadas por dois arautos que utilizaram para isso aparelhos celulares. No castelo, ainda assim, até o sinal de internet é restrito e precisa de autorização para ser utilizado.

“Ali é um pedacinho do céu que a gente encontra”, conclui Cilene, sobre a ordem em São Paulo onde vive a filha. A expressão, então, foi repetida por um dos arautos para encerrar a entrevista que tentou, momentos antes, persuadir a continuar, apesar do tempo já apertado.

Por dentro da missa dos Arautos do Evangelho (Foto: Paulo Francis)
Por dentro da missa dos Arautos do Evangelho (Foto: Paulo Francis)
Waldemar Guimarães Barbosa Filho, 32 (Foto: Paulo Francis)
Waldemar Guimarães Barbosa Filho, 32 (Foto: Paulo Francis)

Hábitos e símbolo - A ordem não é conservadora e tradicional apenas na arquitetura. As vestes e os ritos religiosos também rementem a época em que Brasil quiçá era colônia. Os integrantes que são consagrados praticam o celibato e dedicam-se integralmente à ordem. No castelo em Campo Grande, em piso superior, vivem 10 arautos.

Os hábitos dos Arautos consistem em túnica marrom reservada aos sacerdotes, enquanto os leigos consagrados usam a túnica branca-marfim. Os que começam na chamada experiência vocacional usam o hábito de noviço: túnica e escapulário bege. O hábito do setor feminino é uma túnica de cor amarelo-ouro e escapulário marrom. Usam, também, correntes amarradas à cintura e botas com aparência militar.

Utilizam, como principal símbolo, presente na túnica, a Cruz de Santiago de Compostela. Este símbolo surgiu na Espanha, no que se acredita ser período posterior à batalha de Clavijo (844). Depois, em data desconhecida, passou a ser símbolo da Ordem Religiosa de Cavaleiros dedicados a defender peregrinos que visitavam os restos mortais do Apóstolo Santiago, na cidade de Compostela, na Galiza, Espanha.

O próprio termo utilizado para denominar a associação tem significado medieval. Arauto é um oficial das monarquias medievais encarregado de proclamações solenes, do anúncio de guerra ou paz e de informar os principais sucessos nas batalhas. Em Campo Grande não funciona internato e a sede é destinada apenas aos homens, mas crianças e adolescentes frequentam o espaço aos finais de semana, onde, muitas vezes, também dormem.

Pessoas que sejam consideradas, dentro da ordem, leigos, casados ou solteiros que vivem no mundo, podem participar por meio dos “Cooperadores dos Arautos do Evangelho”, mas devem apresentar esforço para viver em conformidade “com o carisma e a espiritualidade da Associação”. Carisma aqui deve ser entendido como “dom extraordinário e divino concedido a um crente ou grupo de crentes para o bem da comunidade”. Os chamados cooperados devem, também, dedicar o tempo livre e cumprir certas obrigações dentro da Associação.

“Tenho certeza que a verdade vai prevalecer”, repetiram os três arautos que se despediram antes que a reportagem deixasse o castelo enquanto a missa continuava ao fundo.

Integrantes da organização (Foto: Paulo Francis)
Integrantes da organização (Foto: Paulo Francis)
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