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Cidades

Sofrimento antigo, saiba como a falta d'água gerou tantos protestos indígenas

Há décadas, as aldeias Bororó e Jaguapiru vivem a situação de "pouca água para muita gente", aponta Cimi

Por Mylena Fraiha | 02/12/2024 13:14
Sofrimento antigo, saiba como a falta d'água gerou tantos protestos indígenas
Mulher indígena mostra reservatório vazio em aldeia de Dourados (Foto: Neyla Ferreira Mendes)

Os protestos realizados na última semana pelos guarani-kaiowá na maior reserva indígena de Mato Grosso do Sul, em Dourados, a 233 quilômetros da capital, tiveram como objetivo conquistar algo básico, comum e acessível a toda população: água potável. E essa reivindicação se arrasta há décadas.

De acordo com Flávio Vicente Machado, representante do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em Dourados, os protestos por água potável são frequentes. Desta vez, porém, o estopim foi o convênio de R$ 60 milhões - sendo R$ 45 milhões da Itaipu Binacional e R$ 15 milhões do Governo do Estado - que promete implantar, ampliar e melhorar de sistemas de abastecimento de água em 18 aldeias indígenas localizadas no Cone Sul do Estado.

No entanto, inicialmente, as aldeias Bororó e Jaguapiru, localizadas na reserva de Dourados, ficaram de fora. Essas aldeias abrigam a maior concentração da população indígena da região, com cerca de 20 mil pessoas das etnias guarani, kaiowá e terena, vivendo em uma área de apenas 3,5 mil hectares.

“A gota d'água para eles [indígenas], pelo que pudemos observar, foi o fato de o governo federal, por meio do Ministério dos Povos Indígenas, ter firmado um convênio de R$ 60 milhões com a Itaipu para garantir acesso à água às comunidades indígenas. No entanto, Dourados, que tem a maior população, ficou de fora desse convênio nesse primeiro momento. Isso deixou a liderança revoltada, pois já vêm há meses denunciando a situação”, explica Flávio.

Conforme informado pelo governo federal, os critérios para selecionar as comunidades atendidas pelo projeto “MS Água para Todos” incluem a necessidade de um abastecimento contínuo e monitorado, a vulnerabilidade hídrica, a carência de infraestrutura adequada e os impactos climáticos, como períodos de seca e altas temperaturas, beneficiando aldeias como Amambai, Limão Verde, Tey Kuê, Taquara, Porto Lindo, Pirajuí, Sassoró e Jaguapiré, entre outras.

Outro aspecto apontado por Flávio é que as aldeias possuem um sistema de distribuição precário e improvisado, com tubulações expostas à superfície, o que acelera o desgaste do material. "O sistema tem vazamentos em várias partes da aldeia, e a exposição das tubulações aumenta ainda mais as chances de novos vazamentos. Enfim, são diversos problemas. O sistema de distribuição de água requer manutenção constante, desde a bomba que queima até a caixa d'água e a rede de distribuição."

Além da falta de manutenção no sistema de água, Flávio destaca a realidade do aumento populacional. "É uma reserva hiperpopulosa, e o fato de não haver mais espaços disponíveis está gerando diversas retomadas, ou seja, ocupações no entorno da reserva nos últimos anos. Trata-se de uma população desesperada em busca de melhores condições de sobrevivência".

Protestos – De fora da lista das localidades contempladas, indígenas das aldeias Bororó e Jaguapiru, que compõem a reserva indígena de Dourados, promoveram interdições em rodovias na região. As manifestações ocorreram em três trechos da MS-156 — principal ligação entre Dourados e Itaporã — e no acesso ao Hospital da Missão Evangélica Caiuá.

Nos pontos interditados, troncos, galhos e tratores impediam a passagem em ambos os sentidos, e até estradas vicinais foram obstruídas. Apenas veículos de emergência tiveram autorização para passar.

Diante da escalada de tensão, o Batalhão de Choque da Polícia Militar foi acionado para liberar os bloqueios, no entanto, a ação deixou indígenas feridos. De acordo com relatos de moradores das aldeias Bororó e Jaguapiru, os ferimentos foram causados por balas de borracha, e outros manifestantes sofreram com bombas de gás lançadas pela polícia.

Entretanto, o fechamento de estradas ocorrido durante a semana não foi um fato isolado. De acordo com o funcionário do Cimi, os protestos por água potável nas aldeias são constantes dos indígenas, que persiste há anos.

"O problema de falta de água nas reservas indígenas é crônico, histórico e nunca foi sanado de verdade. O que tem sido feito são medidas paliativas, ao passo que as comunidades vêm reivindicando mais acesso à água. É uma reivindicação que dura há muitos anos e eles nunca tiveram acesso à água de forma integral, vem governo e sai governo”, explica Flávio.

No ano passado, o governo de Mato Grosso do Sul, por meio da Sanesul, elaborou projeto para resolver a falta de água nas aldeias de Dourados. Orçado em R$ 35 milhões, foi inserido no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Um ano depois, no entanto, nada foi feito de concreto para levar água aos indígenas.

Sofrimento antigo, saiba como a falta d'água gerou tantos protestos indígenas
Local do bloqueio realizado pelos indígenas na região das aldeias em janeiro deste ano (Foto: Polícia Militar Rodoviária)

Em janeiro deste ano, a comunidade indígena já havia bloqueado a rodovia para cobrar o abastecimento de água, mas as promessas feitas desde então permanecem sem cumprimento.

A situação se agrava diante do cenário ambiental em Mato Grosso do Sul, onde temperaturas acima da média e chuvas abaixo do esperado têm marcado todos os meses de 2024 na região de Dourados, conforme dados do Guia Clima da Embrapa Agropecuária Oeste.

Sofrimento antigo, saiba como a falta d'água gerou tantos protestos indígenas
Indígenas usam tambor e charrete para buscar água, e crianças utilizam garrafas pet para pegar água em aldeia de Dourados (Foto: Neyla Ferreira Mendes)

Flávio explica que recentemente os indígenas das aldeias Jaguapiru e Bororó já haviam entrado em contato com o Cimi para denunciar novamente a situação. “Faz menos de um mês, recebemos vários vídeos mostrando a falta de água. Crianças sem água para beber ou tomar banho antes de ir para a escola, e professores, mesmo em condições um pouco melhores, também sem água em casa para realizar tarefas básicas. [...] É uma situação que foi se agravando ao longo do tempo e atingiu o limite com o fechamento da BR. Não é a primeira vez que eles recorrem a essas medidas”.

Recentemente o Campo Grande News mostrou famílias indígenas tendo de buscar água de bicicleta em um córrego que corta as aldeias para conseguir cozinhar, tomar banho e lavar roupa. Existe suspeita de contaminação da água por agrotóxico de lavouras próximas.

Acordo – Após a repercussão dos protestos, que resultaram em indígenas feridos, o Ministério dos Povos Indígenas anunciou a destinação de R$ 2 milhões para a construção de dois super poços de água potável nas aldeias Bororó e Jaguapiru. Com o acordo firmado, os indígenas liberaram os pontos de bloqueio.

A perfuração dos poços, prevista para ser concluída até março de 2025, foi estabelecida em acordo entre o Governo do Estado, o MPF (Ministério Público Federal), o DSEI-MS (Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul), a Secretaria Nacional de Saúde Indígena, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígena) e as lideranças das aldeias Bororó e Jaguapiru.

Enquanto os poços não são concluídos, o governo do Estado assumiu o compromisso de fornecer água de forma emergencial. O abastecimento será realizado por caminhões-pipa, que atenderão as comunidades indígenas duas vezes ao dia, diariamente, até a finalização das obras.

Além da perfuração dos poços e do fornecimento de água emergencial, outras iniciativas estão em andamento para melhorar o abastecimento de água nas aldeias. O ministério reiterou que um convênio firmado entre o órgão, o governo do Estado e a Itaipu Binacional preveem um investimento de R$ 60 milhões para a ampliação e modernização dos sistemas de água em oito aldeias, beneficiando cerca de 34 mil pessoas.

Também foi firmado um termo de execução com a UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), com aporte de R$ 575 mil para a construção de poços artesianos.

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