Tragédia de 1913: na briga do circo, 4 mortos, inclusive vereador e coronel
"A vila amanhece traumatizada. Os mineiros e os amigos da principal vítima querem vingá-la, dar maior largueza à tragédia"
No dia 13 de agosto de 1913, uma sexta-feira, reverberou pela então vila de Campo Grande a ameaça: quem vaiasse os artistas do circo, instalado na rua 13 de maio, levaria um tiro na boca. Na mesma noite, deu-se a tragédia com quatro mortes, dez feridos e um circo incendiado.
O banho de sangue que manchou a cidade a 13 dias do aniversário não teve condenados. Mas recheia as páginas amareladas de um processo que faz parte da memória do TJ/MS (Tribunal de Justiça de Mato Groso do Sul). Parte dessa história que atravessa um século chega a 2015 nas palavras do promotor Asprigio Gomes.
"Era a noite de 13 de agosto, foram os denunciados ao "Circo João Gomes" que funcionava então nesta Villa e ali chegando o Alferes Commandante do Destacamento policial proibiu que os espectadores dessem gritos e vaiassem o palhaço", relata.
A tal medida desagradou um grupo de rapazes. No intervalo da apresentação, que acontecia no cruzamento da 13 de Maio com a Barão do Rio Branco, chegou o comandante Antonio Pulcherio da Cunha Espíndola com um reforço de efetivo para a patrulha. Na ocasião, o suplente do delegado em exercício Antonio Marcondes de Carvalho deu ordem para revistar a todos.
"Começaram os protestos do lado destas e logo em seguida a polícia iniciou forte tiroteio contra os mesmos, ocasionando assim mortes e ferimentos", diz o promotor.
O primeiro a ser alvejado foi o coronel José Alves de Mendonça. Na denúncia contra o comandante, o suplente de delegado e outras nove pessoas, consta que José "procurando acalmar os espíritos exaltados e evitar qualquer atricto entre a polícia e o povo, recebeu de braços abertos alguns ferimentos que lhe causaram a morte momentos depois".
Logo depois, foi morto o vereador Germano Pereira da Silva, integrante da 4ª legislatura da Câmara Municipal de Campo Grande. No tiroteio também morreram o furriel (o que hoje equivale a sargento) Augusto Gama e o cabo Quintino Camargo, praças do Destacamento Policial. O saldo foi de dez feridos: quatros praças e seis civis.
Cheiro de sangue - Para a promotoria, havia indício de crime premeditado, pois a questão da vaia nao era "motivo para se fazer fogo sobre uma população na maior parte indefesa e desarmada".
Desta forma, ganhou força a tese de que a motivação foi vingança de Espíndola contra Mendonça. Consta que dias antes da tragédia, os dois tiveram uma grande discussão por causa da prisão e espancamento de um homem, o José Patureba. Para o promotor, a confusão no circo foi propícia para que comeciante Mendonça desaparecesse do "número dos vivos".
Na denúncia, são citados abuso de poder e responsabilidade dos funcionários públicos, que não poderiam concorrer para o "massacre de um povo que tem direito de se divertir e manifestar os seus pensamentos".
Em documento, datado de 14 de agosto de 1913, Espíndola afirma que os policiais foram alvejados a tiros e reagiram. As testemunhas prestaram depoimento em setembro na Câmara Municipal. Os relatos são de susto com o barulho do tiroteio, correria, consternação diante das mortes e revolta dos moradores, que cogitaram atacar o batalhão da polícia. A denúncia foi julgada improcedente por não ser possível identificar os autores do crime. Os envolvidos deixaram a cidade.
Em cores mais literárias, o episódio é lembrado no livro Camalotes e Guavirais, de Ulisses Serra. "A vila amanhece traumatizada. Os mineiros e os amigos da principal vítima querem vingá-la, dar maior largueza à tragédia, num sentimento de culpa, de feras que sentiram o cheiro de sangue de amor próprio ferido. Organizam-se em bando, armam-se mais e melhor e dão à vila o sinistro aspecto de guerra".
Culpa do homens ou da sequencia dos símbolos fatídicos, Ulisses relata que o certo é que "Patureba incendiou o circo e o circo quase incendeia a vila toda, não fosse a guarnição federal".