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Cidades

“Nem parece índio”: Funai alerta para drama de crianças em abrigos

De 65 casos citados em relatório, 20 são crianças de até cinco anos; oito retirados das mães com menos de 1 anos e três recém-nascidos

Aline dos Santos | 09/04/2018 13:40
Menino indígena brinca com pilhas. (Foto: Ascom/MPF)
Menino indígena brinca com pilhas. (Foto: Ascom/MPF)

“Salta aos olhos a quantidade de crianças e jovens afastados de suas famílias e comunidades, privados do direito à convivência familiar e comunitária junto a seu povo. É um grito ainda mais forte quando comparado ao número geral de crianças e jovens não indígenas em acolhimento nestes municípios. Porque o número de indígenas é tão maior? O que estaria acontecendo?”

O trecho em destaque é do relatório da Funai (Fundação Nacional do Índio), que aponta 65 crianças e adolescentes indígenas em abrigos nos municípios de Caarapó, Dourados, Ivinhema, Maracaju e Rio Brilhante. O quadro mais severo é em Dourados, a 233km de Campo Grande, com 50 crianças e adolescentes em “acolhimento institucional”. Os dados são até novembro de 2017.

Se o que determina a ida para o abrigo são negligência e violência, a Funai pede que antes de ser retirada do cotidiano na aldeia, seja avaliada a possibilidade de uma família acolhedora.

“Não estamos aqui contra a proteção das crianças. Por outro lado, nossa preocupação é antes do acolhimento, se esgotasse as demais possibilidades. Com possibilidade de inserção da criança dentro do seu núcleo familiar. Coisa que a gente observou que não vinha acontecendo”, afirma o coordenado regional da Funai de Dourados, Fernando Souza.

Segundo ele, se a violência parte dos pais, por exemplo, pode ser dialogado o acolhimento com avós e tios. Fernando lembra que a infância longe de casa se torna ainda mais complicada quando se trata de crianças indígenas, com ruptura no modo de vida e da língua.

“A maioria dessas crianças institucionalizadas só falam a língua materna em casa, guarani ou kaiowá. Vai para um lugar onde ninguém fala a sua língua. Começa a perder as suas referências culturais. Constitucionalmente também é uma violência. Tira seu modo de vida, crenças, organização social. Tudo é quebrado, jogado no lixo”, afirma Fernando.

Infância nas aldeias é marcada por problemas sociais. (Foto: Ascom/MPF)
Infância nas aldeias é marcada por problemas sociais. (Foto: Ascom/MPF)

“Tão bonito que nem parece índio”

Dos 65 casos citados no relatório, 20 são crianças de até cinco anos; oito retirados das mães com menos de 1 anos e três recém-nascidos. Segunda maior cidade do Estado, Dourados tem reserva indígena com 3.400 hectares para 17 mil pessoas. E é lá que se encontra o maior contingente do acolhimento institucional: 50 crianças e adolescentes em quatro abrigos.

Um exemplo é o Lar Santa Rita de Cássia. Conforme o relatório, a capacidade da instituição é para 40 crianças, de ambos os sexos, com faixa etária até sete anos. O abrigo tem 28 indígenas. As restrições de idade e sexo separam irmãos. Segundo a Funai, um grupo de seis irmãos se espalham por três casas de acolhimento.

A separação de irmãos também acontece em Rio Brilhante, a 163 km de Campo Grande. O município tem 7 indígenas em dois abrigos. Do total, seis são de uma mesma família, incluindo irmãos de 8 meses e 13 anos, e um recém-nascido, filho da adolescente de 13 anos.

O município de Caarapó reúne o terceiro maior número de crianças indígenas em acolhimento e também recebe indígenas de Juti. São seis crianças na única instituição de acolhida. Em Maracaju, são dois jovens no abrigo. A equipe da Funai também passou por Ivinhema, mas a criança indígena teve a guarda entregue, em setembro do ano passado, a uma família não-indígena.

“O fato, muito grave, ocorreu segundo a equipe técnica da instituição, porque a criança não havia sido identificada como indígena no processo ou em qualquer outro atendimento feito pela rede, não sendo assim tratada de forma diferenciada no processo, com intimação da Funai”, informa o relatório.
A distância da cultura indígena traz novos hábitos e a equipe da Funai frisa no relatório uma afirmação ouvida durante as visitas. Vai ficando “tão bonito que nem parece índio”.

"Não tem direito de estar na sala de aula, direito de brincar, de ter uma casa, ter no mínimo três refeições diárias": o retrato da infância em aldeias de MS. (Foto: Ascom/MPF)
"Não tem direito de estar na sala de aula, direito de brincar, de ter uma casa, ter no mínimo três refeições diárias": o retrato da infância em aldeias de MS. (Foto: Ascom/MPF)

Infância confinada

Com cinco mil famílias confinadas em 3.400 hectares das aldeias Jaguapiru e Bororó, a infância na reserva indígena, praticamente na área urbana de Dourados, tem as marcas da negativa de direitos básicos e com muitos casos de famílias desestruturadas.

“O número de escolas dentro da reserva não contempla as crianças em idade escolar. Logo, a gente tem projeção de que há centenas de crianças fora da sala de aula de aula. Estamos tentando fazer levantamento real desse número. Não tem direito de estar na sala de aula, direito de brincar, de ter uma casa, ter no mínimo três refeições diárias. É um confinamento com falta de políticas estruturantes”, afirma o coordenador da Funai de Dourados.

Neste cenário, miséria e alcoolismo convergem para um problema social, numa região do Estado que já foi notícias por alto índice de suicídio entre indígenas, desnutrição das crianças e uma recorrente disputa por demarcação de terras.

“O acolhimento é você resolver a questão depois de tudo ter falhado. Nessa questão que envolve a adoção de criança indígena, cada caso é um caso. Vai depender de um total esgotamento da criança não ser atendida por alguém da sua família indígena ou grupo indígena. As crianças têm que ser ouvidas. Em média, são crianças com 6,7 anos”, afirma o antropólogo Diogénes Cariaga.

Ele aponta que a rede de atendimento é fragmentada, mas a solução é pensar junto. “Tem a fragmentação das políticas públicas, até aqui atende um, depois daqui é o outro. Mas a vida das pessoas não é fragmentada assim”, diz.

Cadastro Nacional de Adoção

Em dezembro de 2017, o juiz da Vara da Infância e Juventude de Dourados, Zaloar Murat Martins, afirmou que iria liberar crianças indígenas para o Cadastro Nacional de Adoção, permitindo a adoção por famílias não-indígenas.

Na entrevista ao Dourados Agora, o magistrado afirmou que a medida era necessária porque as crianças não estavam tendo opção de serem acolhidas por famílias indígenas, permanecendo muito tempo nos abrigos.

O Campo Grande News solicitou entrevista com o magistrado, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.

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