Amor ao trem se explica nas histórias inéditas dos registros apenas da memória
Só quem viveu na época da ferrovia sabe a importância que o local foi não só para o desenvolvimento da Capital
Honrar o passado da história de Campo Grande é reverenciar a ferrovia e as memórias que trem registrou nos moradores mais antigos. Só quem subiu em um trem de passageiros, sabe a saudade que a retirada dos trilhos deixou. Em uma época que quase não se tirava fotos, o Campo Grande News decidiu esmiuçar as lembranças desses privilegiados que ainda vivem conectados com a Maria Fumaça.
Para a artista Lenilde Ramos, a ferrovia foi um período marcante da sua vida. “O trem permitiu a ligação das pessoas, com uma maneira mais fácil de se deslocar. Ele historicamente marcou o desenvolvimento econômico da região sul do estado, que na época, ainda era Mato Grosso e, ao mesmo tempo, do desenvolvimento conexão social, porque estrada, na época, não existia”, lembra.
Quem morou em Campo Grande entre a década de 20 até década de 60, só tinha o trem como transporte mais democrático. “As estações de trem reuniam pessoas de todas as idades. Todo mundo estava lá, médicos, advogados, autoridades, gente mais simples. Tinha primeira classe, bilhetes de segunda classe e tinham as cabines. Eu adorava viajar de cabine com meus irmãos, porque tinha beliche. A decoração com lampadinhas, Art Nouveau, Art Deco, a pia, coisas de madeira, era tudo muito lindo”.
O vagão restaurante era para quem era passageiro da primeira classe e o famoso prato que se tornou tradicional para os viajantes que não levavam matula, era o bife à cavalo. “Todo mundo queria comer o bife a cavalo do restaurante. Era super romântico as viagens, tipo filme. O povão levava matula, com frango frito com farinha, se viravam. Mas existia todo um charme de viajar de trem”, conta.
Quem não levava matula, os garçons eram exímios malabaristas. Amarravam toalhas de mesa no pescoço e empilhavas quantos pratos feitos conseguiam carregar para vender nas cabines. Naquele tempo, a confiança era tamanha, que o trem chegava devagar na plataforma e as pessoas já jogavam os pertences pela janela para reservar lugar no vagão. “Jogavam sacola para sentar no lugar. Nunca soube de alguém pegou o lugar do outra. Os trens estavam sempre lotados, era raríssimo ver um vazio”, destaca.
Também tinha comércio dentro do vagão. “Meu pai já sabia que teria que comprar uns quatro gibis para eu ler durante a viagem quando passava o vendedor de revistas. Além dos doces”, destaca Lenilde. Nas memórias das viagens na época das cheias do Pantanal, estão garçons e passageiros aproveitando para levar a varinha e pescar um peixe no rio que ficava pertinho do trilho.
“Às vezes, enchia tanto, que chegava perto do trilho. Tinha viagens que precisavam ser suspensas porque a água chegava no trilho. Para se exibir, os garçons pegavam o peixe e colocavam em uma vareta do lado de fora da janela, vinha gaviões e pegavam pertinho da mão”, conta.
Filha de ferroviários, ela tinha o ‘passe livre’ para circular em qualquer trem da ferrovia. “Com 12 anos, chegava fim de semana, eu partia para o trem. Cresci em meio a isso, por isso, falo que teve um genocídio ao terminarem com a ferrovia. Desestruturou toda uma estrutura em torno daquilo, de emprego e trabalho. Desmoronou estrutura física, casas que tinham nas paradas. Uma verdadeira sucata federal. É uma vergonha nacional o que fizeram. Hoje, trago resto de prego, parafuso grande, é maneira de referenciar os meus antepassados”.
Paradas - Uma das lembranças mais marcadas dos entrevistados, eram as paradas nas estações ferroviárias. Cada uma tinha sua própria aldeia de moradores locais vendendo frutas, peixe frito, pamonha, chipa.
Cada parada de trem tinha parada de manutenção, controle de rodovia, tinham casinhas... aldeias... vendia frutas, peixe inteiro frito, pamonha. Por isso, os passageiros já sabiam que precisavam levar dinheiro trocado para comprar os quitutes.
Para a professora María Madalena Dib Mereb Greco, que é conhecida pelos mais próximos como Maria Fumaça, pela paixão que tem pelos trens, o transporte é mágico. “Eu convivi e vivi regida pelo apito da Noroeste. Casei com ferroviário, fiz minha mudança de vagão. As férias em família era de trem. Ele ligava tudo”.
Segundo ela, aqui no Estado era um dos poucos, se não o que exclusivo trazia o chacareiro para fazer compras, fazia consulta médica - de manhã, vinha os sintomas e à tarde, ia com a receita -, trazia o jornal e conectava a Capital ao resto do mundo.
“Dentro da memória não só das pessoas, como grandes políticos, está a memoria de uma viagem de trem para encontrar os grandes centros. Os que iam para São Paulo, fazer medicina e direito tem alguma memória. Fiz grandes amizades, viagens que marcaram a lembrança dos meus filhos”.
A maior saudade de todos é comum, o movimento da ferrovia. “Era muito vivo. Um espaço pulsante. Era uma alegria ver a chegada das pessoas. O passeio da família era ir buscar o pai na ferrovia. Depois que acabou a ferrovia, choramos muito. Eu sentia falta da manobra, quando engata um trem no outro e faz um barulho ‘tum’. O nosso ouvido estava treinado para saber quando o trem estava chegando.”
Maquinista - O presidente Associação dos Ferroviários Aposentados e Pensionistas de Estado, e maquinista aposentado, Nelson Pereira de Araújo, 62 anos, conta que a ferrovia está na veia. “A gente fala que nosso sangue é de aço, feito de trilho”, afirma.
Desde 1984, ele começou a participar do comando da locomotiva. “Sempre buscava aprimorar”. Ele fala do sistema de alavancas como se estivesse a sua frente. “São oito alavancas de acelerador. Tem o reversor quando temos que mudar para frente ou para trás. O freio automático, alavanca de aplicação que aciona toda a composição e o freio da locomotiva e o auxiliar que chamamos de dinâmico. É fácil de comandar”, afirma.
A maior saudade é estar dentro da ferrovia. Tanto é que ele ainda vai lá todos os dias e cuida do Museu que o lugar se tornou, fazendo o papel de guia pelo espaço. “A gente tinha um convívio aqui. Passava até 12 dias fora trabalhando. Descansava um ou dois. Sinto falta da vida dos ferroviários. A interação, as conversar, brincadeiras, apelidos.”
Segundo ele, a maior esperança de todos da ferrovia, é que o trem de passageiros retorne. “A passagem é muito barata, atinge todas as beiradas dos rios e fazendas”, justifica. Essa história toda acabou em meados de 1995 e 1996, com a privatização da ferrovia e entre 1997 e 1998, com a extinção da mesma. Hoje, só tem trem de carga no Estado.
Mas voltando aos tempos de ouro do maquinista, ele relembra que a unidade era o local onde a equipe formada por auxiliar e pelo maquinista, pernoitava no hotel com vários quartos, sendo um quarto com duas camas que era para equipe. “O trem não parava. Ele rodava 24h. Cada viagem era única. Principalmente, de Cachoeirão até Corumbá. Era fabuloso a paisagem, o Pantanal, a natureza”, conta.
Ele acredita que é injustificável a reversão de valores feitos com a retirada da ferrovia e o investimento em ferrovia. Uma carreta transporta cerca de 25 toneladas, metade da capacidade de um vagão de carga, por exemplo.
“O cálculo não bate. Hoje, são mais de 250 carretas por dia no trecho Três Lagoas, por exemplo. Quantos acidentes, animais mortos, impacto financeiro isso não gera? Um trem simples, que tem 16 vagões, representa o mesmo que 34 carretas”, ressalta.
Para quem quer conhecer um pouco mais da história da ferrovia, basta agendar horário de visita ou ir até a Ferrovia, na Avenida Calógeras, 3045, de segunda a sexta, no período da manhã. A partir de setembro, o museu ficará aberto em tempo integral. Os interessados em relembrar as histórias, podem agendar o passeio pelos telefones (67) 3222-7741 ou 99273-8362.