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Capital

Confluências: viver às margens é não ter endereço, muito menos água potável

Ao longo dos córregos, a falta de teto também exibe uma legião que se banha e bebe água a céu aberto

Cleber Gellio | 07/11/2021 14:26
Homens tomam banho com água do Rio Anhandui, única fonte para higiene pessoal. (Foto: Paulo Francis)
Homens tomam banho com água do Rio Anhandui, única fonte para higiene pessoal. (Foto: Paulo Francis)


Em frente à Casa de Leis 

Hoje reside um saudoso escritor 

Era tratado a um filho de rei 

Entre poetas os quais pesquisei 

Sempre exaltava o tal precursor 

É habitante da mesma avenida 

Dos imortais, o mais eloquente 

Foi o maior que tocou em vida 

E para saudá-lo antes da saída 

A Casa de Letras o fez presidente

Pode até parecer poesia esse 'une-verso' de sentido figurado do nosso cotidiano, mas acredite, isto não é verso, é prosa. Para ser mais preciso, uma das muitas facetas do Prosa, o aclamado córrego da florada de Paineiras, que marca o início da história de Campo Grande e que mais adiante irá revelar onde essa história irá desaguar.

Por coincidência, ou não, num dos trechos por onde correm suas águas, duas edificações, frutos do 'boom' imobiliário da década passada, próximas uma da outra e com vista privilegiada da Avenida Ricardo Brandão, homenageiam dois dos maiores expoentes da literatura brasileira: Olavo Bilac, apelidado 'o príncipe dos poetas' e Machado de Assis, até então considerado por muitos o maior romancista do Brasil.

Porém, os tempos são outros e no vocábulo de hoje, já não há espaço para metáforas ou algo do tipo, pelo contrário, o papo é reto. Num breve exercício de imaginação, caso os mestres da escrita estivessem atuando nos dias de hoje ou quem sabe se os prédios ganhassem vida como nas ficções, muito provavelmente eles ouviriam questionamentos do tipo: "Bilac, por que valoriza tanto a forma estética em sua obra?", "Machado, em seu próximo texto irá abordar as mazelas sociais que jazem bem embaixo de suas marquises? Por favor, escreva algo a respeito ou pare de romantizar!"

Homem em situação de rua utiliza água do rio para tomar banho. (Foto: Cleber Gellio)
Homem em situação de rua utiliza água do rio para tomar banho. (Foto: Cleber Gellio)

E motivos não faltariam, pois hoje a dura realidade social, permeada por águas urbanas, é crônica e traz à tona a face mais cruel da pobreza, potencializada pela pandemia, mesmo nesta atual fase de desaceleração do vírus.

Mesmo diante de bons indicadores divulgados, no último dia 5 de novembro, pela pesquisa do MapBiomas, grupo de ONGs (Organizações Não Governamentais), universidades e empresas, mostram que Mato Grosso do Sul teve apenas 0,73% de aumento de favelas nos últimos 35 anos, o menor índice do país e também a capital melhor ranqueada. A crise sanitária provocada pela covid-19 aliada à alta dos preços dos alimentos e retração econômica têm evidenciado o desequilíbrio habitacional e, por consequência, uma indireta punição aos mais vulneráveis. Afinal, quem não tem endereço fixo, não tem acesso à água potável.

De acordo com a Águas Guariroba, concessionária do serviço de saneamento na cidade, atualmente, 99,8% das residências de Campo Grande contam com água encanada e 82,6% com cobertura de esgoto. No entanto, segundo a Amhasf (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários), cerca de 5 mil famílias vivem em uma das 38 favelas espalhadas pela cidade, com pouca ou nenhuma infraestrutura, como acesso a água, energia elétrica ou esgoto.

É o caso da família de Elizabeth Araújo dos Santos, de 50 anos, que há seis mora numa ocupação às margens do Córrego Balsamo, na Avenida Guaicurus, onde vivem cerca de 20 famílias. Por ser irregular, o local não conta com redes de energia ou esgoto e muito menos de água potável.

 A gente tinha um filtro de barro, mas infelizmente quebrou. Acho que não vamos comprar outro tão cedo porque a última vez que pesquisei, não custava menos de R$180,00", lamenta a diarista, que sustenta uma filha de 18 anos e um menino de dez.

O marido, Gilson Rodrigues das Neves, de 60 anos, que às 7h da manhã já preparava o almoço e fervia água do café quando foi abordado pela reportagem, não vê problemas em assumir que eles não têm condições de pagar aluguel e que já cansou de mudar de local o 'banheiro da casa' por causa das frequentes enchentes que "arrastavam tudo".

Há anos, se beneficia de um antigo duto de 'água limpa' que atravessa sua área para o consumo. "Nunca negamos que queremos pagar pelo o que consumimos, mas como não estamos regularizados, não podemos fazer a ligação. Mas se eles [concessionária] vierem, não me recuso. A gente paga tudo direitinho, todo mundo aqui é do bem, trabalhador". Porém, falta uma habitação regularizada para o acesso aos serviços.

Gilson é morador da favela às margens do Córrego Bandeira. (Foto: Cleber Gellio)
Gilson é morador da favela às margens do Córrego Bandeira. (Foto: Cleber Gellio)

Com a esposa ganhando R$60,00 a cada faxina e ele com renda que varia entre R$500,00 e R$700 ao mês com o que consegue na venda de material reciclável, a família está entre as 32,5 mil atendidas pelo programa federal Bolsa Família, que será substituído pelo Auxílio Brasil, sem data prevista para começar.

No entanto, a ajuda não é suficiente. "O auxílio ajuda bastante, mas o que queremos é ter um endereço onde a gente possa morar 'certinho'. Esses dias mesmo, tentei contratar um serviço de internet, mas recusaram porque onde a gente mora não vale", relatou Gilson.

A esperança do casal é de que agora as coisas mudem, isso porque, segundo Neves, há dois meses, a família recebeu em casa a visita de uma equipe da Amhasf, que prometeu resolver a situação das famílias que residem de forma irregular ainda este ano. Todo feliz, o morador exibe a 'pichação' em vermelho contendo o número 1, como sinal de primeiro barraco contemplado a receber a notícia da tão sonhada casa própria. "Vieram aqui e pegaram todos os nossos dados e numerou os barracos, agora estamos aguardando", disse confiante o autônomo.

Homem dentro do Rio Anhandui próximo ao Guanandizão. Cadê? (Foto: Cleber Gellio)
Homem dentro do Rio Anhandui próximo ao Guanandizão. Cadê? (Foto: Cleber Gellio)

Às margens 

Já notou a quantidade de pessoas em situação de vulnerabilidade que circula pela cidade? Se para alguns ainda há esperança em conseguir um endereço que possam ter melhores condições de saúde, para outros, a saída tem sido buscar nos recursos naturais alternativas para sanar o problema.

Pelo menos 90 famílias já ocupam boa parte das margens de rios e córregos nas sete regiões de Campo Grande, de acordo com a Cufa (Central Única das Favelas/CG). A maioria delas, próximo ao cruzamento da Ernesto Geisel com a Avenida Manoel da Costa Lima, no Guanandi. "Muita gente se esquece que vários irmãos não conseguiram superar a pandemia de forma agradável. E para quem já estava em situação de rua, o estado piorou", relata Livia Lopes, presidente da instituição.

Para quem passa pelo local, em ambos sentidos, o flagelo é visível, ou quase. Isso porque, muitos desses indivíduos estão a um nível abaixo da rua, utilizando diretamente a água do rio. Foi exatamente ali no ponto de maior concentração, debaixo do pontilhão da Manoel da Costa Lima, que o Campo Grande News encontrou Wiliam Giovan, de 37 anos, tomando banho a canecadas num cano improvisado.

Wiliam Giovan toma banho em um cano improvisado no pontilhão. (Foto: Paulo Francis)
Wiliam Giovan toma banho em um cano improvisado no pontilhão. (Foto: Paulo Francis)

Um pouco mais adiante e a cena se repete. O repórter fotográfico, Paulo Francis, flagrou o momento em que dois homens utilizam a água do Anhanduí, enquanto um tomava banho, o outro escovava os dentes.

Do outro lado da margem, estava Roberto de Souza, de 46 anos, que recém havia deixado o banho na manilha de concreto por onde escorre a água devolvida ao rio. Há um mês, o rapaz deixou Dourados (região centro-sul do Estado), onde vivia com o pai que faleceu recentemente por problemas de saúde, em busca de emprego na Capital. "Lá [Dourados] é pior que aqui para trabalho, por isso, resolvi ficar por um tempo", disse Roberto, que se encontra sem abrigo para dormir e documentos pessoais.

Em algumas situações, muitos deles chegam até mesmo a consumir a água retida do rio. É o caso de Samanta Marques, de 39 anos, mulher trans que foi parar nas ruas depois de desentendimentos com a família por causa de sua identidade de gênero. Ela confessa que já chegou ao extremo de beber água imprópria para o consumo para não passar sede.

Confira o depoimento dela:

Cursos d´água 

Neste trajeto das águas, a reportagem percorreu pontos possíveis de notar a presença de vida humana a partir dos córregos, passando pelo Prosa e Segredo, que dão origem ao Rio Anhanduí (Ricardo Brandão e Avenida Ernesto Geisel) além do Balsamo (Guaicurus) e Bandeira (Rua Certãzinho), este último no Bairro Piratininga, onde se encontrava mais um migrante em busca de uma vida melhor na Capital, mas que acabou às margens de um córrego.

Por não querer ser identificado, vamos chamá-lo de J.P, um rapaz de 35 anos, que há oito meses, saiu de Cuiabá (Mato Grosso) para buscar uma nova chance de recomeçar a vida. Para trás, deixou, além dos pais e irmãos, a esposa e três filhos.

"Lá me envolvi com drogas e por vergonha, decidi deixar a cidade para tentar recomeçar, mas ficar longe de casa e de todos é muito mais difícil". Hoje, ele mora num barraco que construiu embaixo de uma árvore à beira do córrego, onde utiliza a água para lavar suas roupas e utensílios de cozinha. "Para beber, sempre conto com a ajuda dos vizinhos que nunca me negaram", pontua.

Barraco de rapaz que migrou para Campo Grande à procura de vida melhor. (Foto: Cleber Gellio)
Barraco de rapaz que migrou para Campo Grande à procura de vida melhor. (Foto: Cleber Gellio)

Questionado sobre esta situação do pontilhão da Geisel, o prefeito Marquinhos Trad admite que "algumas pessoas de fato estão ocupando e têm armado seus barracos ali, é uma situação clara. Nós já tiramos esses invasores por diversas vezes, a gente não permite invasão de área pública, invadiu a gente vai e tira, como um rapaz que foi retirado sete vezes", pontua.

Sobre a disponibilidade de moradias, o gestor foi enfático. "Eu não posso dar casa para eles, porque senão eu ofendo uma lei, pois eles devem participar de sorteio público. Quando os levo para um abrigo, não querem ficar. Então, é uma discussão que vai ter que abranger também órgãos de controle".

Fonte de inspiração 

Sabe aquela máxima que diz: fazer o bem sem olhar a quem? Maura de Morais Pires, 45 anos, segue à risca. Há dez anos, largou mão da profissão de cabeleireira e passou se dedicar exclusivamente às pessoas em situação de vulnerabilidade, principalmente dependentes químicos. Duas vezes por semana, com apoio da Cufa, ela percorre os pontos de maior incidência distribuindo, além de refeições, kits de limpeza e higiene pessoal, tais como: creme dental e escova, sabonete, shampoo e ainda absorventes às mulheres, quando for o caso. "Cada bolsa contém a quantidade necessária de materiais para uso individual, assim evitamos desperdício, além de dificultar na troca por entorpecentes".

Maura abriga desde crianças a idosos na casa que chama de albergue. (Foto: Cleber Gellio)
Maura abriga desde crianças a idosos na casa que chama de albergue. (Foto: Cleber Gellio)

Quem chega ao local, no Bairro Guanandi, passa por uma triagem de saúde com um psicólogo voluntário e, em seguida, é encaminhado a um posto de saúde para consultas de rotina. Ali também é possível tomar banho, se alimentar e pernoitar. "Caso não tenha documentação, como o cartão do SUS, por exemplo, a gente providencia. Depois procuramos recolocação no mercado de trabalho", explica.

De acordo com a presidente da Cufa, Livia Lopes, desde março de 2020, no início da pandemia, foram doados às pessoas em situação de rua mais de 150 kits contendo roupas, produtos de higiene, alimentação e água mineral, em parceria com a ONG Ação Humanitária. Porém, com a chegada das vacinas e a volta gradual da população às ruas, as doações despencaram. "Estamos felizes que está quase todo mundo vacinado, no entanto, quando estávamos na fase do distanciamento, fazíamos doações quase toda semana, agora, elas não chegam como antes. Já tem uns dois meses que não vamos, mas é compreensível, afinal falta trabalho ao povo que sempre nos ajuda".

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